Cientista diz na CPI que negacionismo do governo mata pessoas

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Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

A microbiologista Natalia Pasternak, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), afirmou à CPI da Covid nesta sexta-feira que a promoção da cloroquina feito pelo governo federal para o tratamento da Covid-19 “é uma mentira orquestrada” e pode matar “porque leva as pessoas a comportamentos irracionais”. O médico sanitariasta Cláudio Maierovitch também é ouvido pela comissão. Para ele, a população brasileira foi tratada como animal quando o governo decidiu apostar na estratégia da imunização de rebanho.

— É um mentira orquestrada pelo governo federal e pelo Ministério da Saúde. Essa mentira mata, porque leva as pessoas a comportamentos irracionais. Esse negacionismo da ciência perpetuado pelo governo mata.

Ela afirmou que, em testes em animais, a cloroquina já tinha falhado. Mas, por pressão política, acabou sendo testada em pessoas. Ela até ironizou o episódio em que Bolsonaro mostrou uma caixa do remédio às emas que vivem no jardim do Palácio da Alvorada.

— A cloroquina já foi testada em tudo. Já testou em animais, já testou em humanos. Só não testou em emas, porque as emas fugiram — afirmou Natalia.

Natalia disse que remédios antivirais são mais difíceis de desenvolver que antibióticos, que atacam bactérias. Segundo ela, é importante investir nesses medicamentos, mas o controle das doenças provocadas por vírus ocorre por meio da vacinação.

A CPI ouve também o médico sanitarista Cláudio Maierovitch, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Maierovitch avaliou que o governo tentou a estratégia da imunidade de rebanho, ou seja, de deixar o vírus circular para que as pessoas se infectassem até um ponto em que haveria uma quantidade suficiente de imunizados para cessar a epidemia.

— Não somos animais. Fomos tratados dessa forma. A população brasileira tem sido tratada dessa forma ao tentar a imunidade de rebanho ao custo de vidas — afirmou Cláudio.

Ele lembrou que alguns governantes inicialmente minimizaram a pandemia, mas depois mudaram de posição, citando como exemplo o primeiro-ministro britânico Boris Johnson. Destacou que é importante constituir mecanismos de gestão, coordenação e comunicação quando há uma crise sanitária. Segundo ele, isso funcionou por exemplo durante a epidemia de zika em 2015 e 2016, mas foi falho durante a pandemia de Covid-19. De acordo com ele, milhares de vidas poderiam ter sido salvas. Ele também criticou o plano de vacinação do governo federal, e falta de articulação com o Instituto Butantan, que produz a Coronavac no Brasil.

— Não tivemos critério homogêneos [de vacinação] para o Brasil inteiro. Ficou a cargo dos estado, o que pode parecer democrático, um sistema descentralizado. Mas frente a uma pandemia dessa natureza, e à escassez de recursos, isso deixa de ser democrático — disse ele.

Maierovitch e Natália compararam a cloroquina à fosfoetanolamina, substância que ficou conhecida como “pílula do câncer”, mas cujos testes não comprovaram sua eficácia contra a doença.

— Tem gente achando que a lei mudou. Não. Continua valendo a lei que aprovamos aqui, da obrigatoriedade do uso de máscaras — disse Humberto Costa.

Maierovitch criticou a militarização do Ministério da Saúde para tentar controlar a pandemia.

— Isso não é assunto para amador, para quem nunca fez isso na vida. Às vezes são decisões que precisam ser tomadas instantaneamente, de risco, e que se não são tomadas podem levar à falência do programa — disse Cláudio.

Questionado sobre uma terceira onda, Maierovitch afirmou acreditar que os números da doença vão voltar a crescer:

— Se se confirmarem as previsões de uma nova transmissão intensa, e já há sinais indiretos disso, pela lotação dos hospitais, partimos de uma patamar ainda mais alto e sem uma imunidade coletiva capaz de conter isso. Temos a esperança de que a letalidade seja um pouco inferior porque boa parte dos idosos foi vacinada, terá sido vacinada.

O relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), criticou as declarações de Bolsonaro contrárias ao uso de máscara. Para ele, foi um forma de desviar a discussão sobre sua atuação em favor de empresas privadas que compraram insumos para a cloroquina, revelada na quinta-feira pelo GLOBO.

— Ontem, ao ser pego no flagrante de fazer lobby privado para a cloroquina, ele atacou a máscara — disse Renan.

No começo da sessão, os senadores de oposição Humberto Costa (PT-PE) e Randolfe Rodrigues lamentaram a declaração dada pelo presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira. Bolsonaro disse que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, vai fazer um parecer “visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados”.

— É profundamente negativo, continua a mostrar o desinteresse, a indiferença do presidente com sua população. Ficou muito mal para o ministro da Saúde. Ele esteve aqui, marcou algumas diferenças com o presidente da República, disse que as imagens [de Bolsonaro em aglomerações e sem máscara] falavam por si próprias, e disse que estava sintonizado com as medidas não farmacológicas. Espero que o senhor Queiroga tenha a coerência de tomar atitude de acordo com o que ele nos disse. E não aceite intromissão para adotar uma posição profundamente equivocada — disse Humberto.

— É lamentável. Só mostra a necessidade do trabalho desta comissão parlamentar de inquérito — avaliou Randolfe.

Natalia afirmou que a pandemia mostrou que a comunicação da ciência é essencial. Também disse não haver comprovação científica da eficácia da cloroquina contra a Covid-19.

— Ela nunca teve plausibilidade biológica para funcionar. O mecanismo só funciona in vitro, em ensaio — disse, acrescentando: — Já foi testada e falhou para várias doenças virais: zika, dengue, SARs, aids, ebola.

Ela destacou que a correlação entre dois fatores não significa relação causou. Ela mostrou um gráfico que mostra uma correlação entre o consumo de queijo muçarela e a concessão e bolsas de estudo, o que não significa que uma coisa gerou a outra.

— É só as pessoas comprarem mais queijo — ironizou.

Eles defenderam a necessidade de uma comunicação clara. Do contrário, as pessoas podem escolher a orientação que quiserem: ficar em casa, segundo diz uma autoridade, ou ir para uma festa e não usar máscara, conforme diz outra autoridade.

— Não tem como contar com a população se ela está desorientada e confusa. Não temos diretrizes claras — disse Natalia, criticando Bolsonaro:

— Quando ele aparece sem máscara, desdenhando das pessoas que morreram, ele confunde as pessoas, leva à ilusão de que está tudo normal.

Maierovitch qualificou algumas declarações de Bolsonaro sobre a pandemia, como a de que o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas”, como estapafúrdias e homofóbicas.

Natalia se disse chocada quando, ao embarcar no aeroporto para ir a Brasília, viu o avião abarrotado, sem uma cadeira vazia entre um passageiro e outro. Ela também sugeriu que as empresas aéreas forneçam máscaras do tipo PFF2 aos passageiros.

Cláudio defendeu medidas restritivas como o confinamento. Ele disse que há experiência acumulada em outros países, como Portugal, Alemanha e Reino Unido, para dizer que isso funciona. Segundo o pesquisador, duas semana de confinamento no Brasil ajudaria a reduzir a transmissão, porque é o período em que uma pessoa contaminada pode transmitir o vírus.

— Se durante duas semanas eles ficarem em casa e não transmitirem, esse ciclo se encerra — disse Maierovitch.

Os dois criticaram a viagem de uma comitiva do governo brasileiro a Israel para conhecer um spray nasal que poderia ser usado contra a Covi-19.

— O spray estava em fase tão inicial que a comitiva brasileira surpreendeu até os pesquisadores — disse Natalia.

— Quando vi a notícia, o que será que ele s vão observar lá que precisa da presença física, e não um documento? Não consegui pensar em nada que justificasse a presença física. Achei inusitada aquela visita — disseMaierovitch.

Maierovitch disse que já trabalhou com o virologista Paolo Zanotto na epidemia de zika, tendo ficado surpreso com a atuação dele a favor de remédios sem eficácia no tratamento da Covid-19. Foi Paolo Zanotto quem propôs, em reunião com Bolsonaro em setembro do ano passado, a criação de um “gabinete das sombras”.

— Fiquei surpreso com alguém que tem esse estofo, esse “background” abandonar os princípios básicos elementares da construção do conhecimento científico em defesa de algo que não se sustenta. Em alguns momentos, buscava trazer conhecimentos foram da área dele — disse Maierovitch.

Questionado se os bons cientistas não querem trabalhar neste governo no enfrentamento da pandemia, Maierovitch respondeu:

— Eu conheço pessoas que dizem: não vou sujar meu nome, meu currículo para trabalhar nesse contexto.

Natalia afirmou:— É um ambiente negacionista que não dá autonomia para trabalhar como cientista.

O Globo