Subnotificação esconde pandemia descontrolada na Índia

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Foto: Sanjay Kanojia – 5.jun.21/AFP

Enquanto a Índia divulga uma forte diminuição no número de casos de Covid-19, dados indicam que as cifras reais de infecções e mortes podem ser muito maiores. Oficialmente, o país acumula, até este domingo (20), 386.713 vítimas por coronavírus, além de mais de 29,8 milhões de contaminações, mas sucessivos estudos com modelos desenvolvidos por epidemiologistas mostram que a contabilidade de óbitos é extremamente maior.

Em 9 de junho, o estado de Bihar, governado pelo Partido do Povo Indiano (BJP, na sigla em inglês), legenda do primeiro-ministro Narendra Modi, revisou o número de mortes por coronavírus nos meses de abril e maio de 5.424 para 9.375. A atualização ocorreu depois de centenas de corpos inchados e desfigurados de supostos pacientes de Covid-19 serem encontrados boiando no rio Ganges.

Dados do sistema de registro civil de Bihar, porém, revelam que 74.808 pessoas morreram no estado devido a causas desconhecidas nos primeiros cinco meses de 2021, período que coincide com a mortífera segunda onda da Covid no país. A cifra é quase dez vezes o número oficial de mortos pela pandemia na região entre janeiro e maio deste ano.

Essa cifra pode ser ainda maior, porque, mesmo antes de a pandemia atingir a Índia, só um terço das mortes era oficialmente registrada. Pior: esse número também pode ter caído porque, muitas vezes, as pessoas se recusaram a procurar hospitais com medo de contrair o vírus.

Em 2021, houve também o avanço da variante delta, detectada primeiro na Índia. Estudos apontam que essa mutação é mais contagiosa e gera mais complicações, o que aumenta a necessidade de internação em hospitais.

A Índia sofre duras críticas da comunidade científica local por ocultar dados da crise e ter reivindicado vitória contra a pandemia no ano passado. As autoridades atribuíram erroneamente a “extinção” da Covid a uma espécie de imunidade natural que os indianos teriam devido à exposição a outros vírus.

Tal declaração, repetida por membros importantes do governo a autoridades estaduais, criou uma complacência de que a Covid não voltaria ao país. Mas a segunda onda se espalhou, lotando hospitais e crematórios e obrigando famílias pobres a atirar parentes mortos no rio ou enterrá-los nas margens.

Milhares de corpos depositados em covas rasas nas margens do Ganges no estado de Uttar Pradesh foram expostos depois que as chuvas no início de maio removeram a terra. Moradores dizem que a maioria dos cadáveres é de pacientes de Covid que morreram em casa sem conseguir tratamento e cujas famílias os jogaram no rio porque não podiam pagar por um funeral adequado.

Outro indicativo de que há subnotificação no país é o caso de Andhra Pradesh, no sul, que registrou ao todo mais de 130 mil mortes em maio, quase cinco vezes a cifra de óbitos no mesmo mês em 2018 e 2019. O número oficial de mortes no estado por Covid-19, porém, é de 12.269.

Shahid Jameel, um conhecido virologista que recentemente renunciou à direção do Consórcio Genômico Sars-CoV-2 da Índia, disse que o país divulga um número de mortes que representa entre um quinto e um décimo do real, porque mesmo em tempos normais os óbitos não são registrados com precisão.

“Embora a curva pareça ter se achatado, é cedo para dizer. Temos de esperar para ver se essa pequena tendência descendente existe ou não”, afirma Jameel. O governo indiano, por sua vez, afirma que a queda de casos ocorre devido à imposição de lockdowns e ao avanço da vacinação, mas até agora apenas 3,6% dos 1,3 bilhão de habitantes do país foram totalmente imunizados, e 16,3% receberam a primeira dose.

De acordo com o Instituto de Ciências Matemáticas de Chennai, a Índia precisa vacinar ao menos 50% de sua população para alcançar a imunidade de rebanho. O governo anunciou que imunizará 1 bilhão de pessoas até dezembro, o que implica uma demanda de produção de mais de 2 bilhões de doses.

Mesmo que cada um dos três fabricantes de vacinas no país —Bharat Biotech, Instituto Serum e Dr. Reddy’s— planeje aumentar a produção mensal para 100 milhões de fármacos até agosto, a Índia ainda assim enfrentaria um déficit considerável. Em relação aos lockdowns, os bloqueios durante a segunda onda foram mais eficazes e menos dolorosos, especialmente para trabalhadores migrantes, que tiveram de caminhar centenas de quilômetros de volta às suas regiões após Modi anunciar a medida repentinamente na primeira vez. Porém, o próprio governo permitiu a realização de festivais religiosos e comícios, que se mostraram eventos superpropagadores, afetando a efetividade dos bloqueios.

Os relatos iniciais de subnotificação de mortes por Covid surgiram em Gujarat, estado natal do premiê, depois que o Partido do Congresso, de oposição, acusou autoridades de subestimarem ao menos 61 mil mortes desde 1º de março. As longas filas de cadáveres em crematórios levaram o parlamentar de oposição Naushad Solanki a buscar informações diretamente de órgãos municipais.

“Perguntei-me o que estaria matando essas pessoas. Alguém lançou bombas ou o quê?”, afirmou Solanki à Folha. Os números obtidos por ele revelaram discrepâncias assustadoras, e o dado real, segundo o legislador, é 25 vezes maior que as cifras anunciadas oficialmente.

A agência de pesquisas C-Voter estimou no mês passado que ao menos 1,8 milhão de pessoas na Índia podem ter morrido de Covid-19, o que colocaria o país à frente de EUA e Brasil no ranking global de óbitos. Segundo o Registro Geral da Índia, só 77% das mortes em todo o país são oficialmente registradas, e apenas 22% delas são certificadas por médicos.

“Há medo entre as autoridades de saúde, e por isso relatam menos mortes. Elas têm de lutar contra muitos empecilhos”, diz o professor Giridhar R. Babu, da Fundação de Saúde Pública da Índia. “Esse medo deve ser substituído por informação, mostrando que dados reais são muito importantes contra a Covid.”

Babu afirma que os estados indianos que ocultam casos e mortes por Covid estão enfraquecendo a população ao deixar de detectar a infecção quando ela já está ocorrendo, o que permitiria à pessoa contaminada buscar acesso a tratamento adequado contra a doença. Para Babu, quando o governo deixa de fazer uma coleta justa de dados, as desigualdades existentes no país são ampliadas.

Enquanto as restrições provocadas pela desastrosa segunda onda de infecções na Índia são relaxadas, com estados liberando atividades, a provável terceira onda de infecções já entrou no radar da população e da comunidade científica, e uma nova alta atingiria o país nas próximas seis a oito semanas.

A situação parece tão pavorosa que até mesmo o estado de Maharashtra, epicentro da segunda onda de coronavírus no país, projeta que o número de casos duplique.

Folha de S. Paulo