Golpe de1964 poderia ter ocorrido em 1961

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Foto: Museu da Comunicação Hipólito José da Costa/Divulgação

Na madrugada de 27 de agosto de 1961, em meio à turbulência após a renúncia do presidente Jânio Quadros, Flávio Tavares, então editor e repórter do jornal Última Hora, recebeu do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, um manifesto em defesa da posse do vice-presidente João Goulart, assinado pelo marechal Henrique Teixeira Lott, derrotado na eleição presidencial de 1960.

Flávio estava entre o grupo de cinco jornalistas que acompanhavam o desenrolar dos fatos daquele domingo dentro do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho.

Deputados haviam repassado a Brizola a mensagem de que o ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, dissera que Jango, então em viagem à China, não poderia assumir a Presidência nem voltar ao Brasil.

Em depoimento à Folha, Flávio, 87, lembra como foi testemunhar a defesa pela Legalidade naqueles dias de inverno no Rio Grande do Sul que impediram um golpe.

Ele participou da resistência contra a ditadura militar após 1964, foi detido três vezes e estava entre os presos trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado em 1969.

A minha lembrança mais profunda daqueles dias foi no domingo, 27 de agosto. A renúncia do Jânio Quadros foi em uma sexta, e no domingo esperamos no Palácio Piratini, de revólver em punho, uma invasão do Exército.

O Brizola já tinha começado os pronunciamentos na rádio. Nós ficamos esperando o ataque. Lembro do Brizola na parte de cima do palácio, com uma metralhadora nas janelas do gabinete dele, pronto para resistir.

O Exército ainda obedecia às ordens dos ministros militares, como se chamavam os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Eles tinham decidido que, em razão da conjuntura, não era aconselhável que o vice-presidente voltasse ao país.

A campanha foi lançada por uma edição extra da Última Hora, um vespertino que não circulava aos domingos. A ideia da edição extra, com título na primeira página “Golpe contra Jango”, foi do Brizola, que chamou o diretor do jornal e sugeriu.

De modo geral, quando a polícia atua sobre a imprensa é para coibir, empastelar jornais, impedir a distribuição, impedir a circulação. Nesse dia foi o contrário. Em cada carga da distribuição do jornal, havia dois policiais da Brigada Militar, a polícia militar gaúcha.

Eu era o editor de política da Última Hora em Porto Alegre, que era editada em sete capitais. Todo o material político que saía no jornal passava pelas minhas mãos.

Na sexta, 25 de agosto, fiquei sabendo por uma informação captada no Palácio Piratini que o Jânio havia renunciado. Eu acompanhava Brizola em todos os detalhes. Ele era uma figura muito ativa. Quando ele viajava, eu viajava. Cobria o governador onde ele estivesse.

Não se previa nada daquilo. A primeira reação do Brizola foi achar que a renúncia se deu por alguma dificuldade do Jânio. O Brizola vai às janelas do palácio e faz um apelo ao presidente que, caso tivesse dificuldades, o Rio Grande do Sul o apoiaria.

Só que depois o Brizola entra em contato com o secretário de imprensa, Carlos Castello Branco, e ele diz: ‘Não, isso está consumado, o presidente já foi para São Paulo’.

Brizola anuncia que vai resistir e, como só sobrou a rádio Guaíba no ar, depois que outras emissoras transmitiram o discurso do Marechal Lott em apoio ao Jango, ele a requisitou.

A polícia ocupou a rádio, os transmissores foram transferidos para os porões do palácio, onde funcionava a sala de imprensa, e ali se articulou a Rede da Legalidade.

O rádio era o grande veículo de comunicação, tinha recém-aparecido o radiozinho de pilha, e todo mundo, de todas as classes sociais, tinha um, como hoje tem telefone celular.

Houve uma ordem de Brasília para bombardear com aviões da base aérea de Canoas, próxima a Porto Alegre, o palácio.

Ela só não se cumpriu porque os sargentos se rebelaram, esvaziaram os pneus dos aviões e tiraram as bombas. No mesmo dia, o general Machado Lopes, comandante dos estados do Sul, vai até o palácio do governo.

O Brizola não sabia o que ele iria fazer, achou que ele poderia prendê-lo ou pedir que renunciasse em favor da paz social —isso o próprio Brizola me confessou depois, quando estivemos exilados juntos em Portugal—, mas o general foi comunicar que o 3º Exército também estava a favor da Constituição.

Nesse momento, o Brizola passa o comando da Brigada para o Exército.

Nós tomávamos café da manhã, almoçávamos e jantávamos no Piratini. Eu, praticamente, não dormi, durante os seis ou sete primeiros dias.

Com a idade que eu tinha na época, 27 anos, era possível fazer isso. Era tudo tão arrebatador que o psicológico se sobrepunha ao físico. Além de jornalistas, não nos limitamos a cobrir os acontecimentos, éramos participantes deles.

Entre o crime e a civilização, só podemos ficar com a civilização. A quebra da Constituição era o crime maior. Quem iria apoiar a decisão dos ministros militares? A participação popular foi tão intensa que teve uma função de arrebatamento. Tinha um posto de recrutamento pela resistência.

Eu publiquei no meu livro [“1961 – O Golpe Derrotado”] uma fotografia aérea dos comitês de resistência desfilando por Porto Alegre, eram milhares de pessoas.

Pela primeira vez, uma sublevação buscava não destruir a Constituição, mas o seu cumprimento. Que se dê a César o que é de César.

Então veio a questão do parlamentarismo, Brizola se afastou dos microfones depois que João Goulart aceitou o acordo para poder tomar posse, porque se falasse teria que atacar o Jango. Para nós, significou uma traição.

Hoje, eu acho o contrário, que foi uma forma racional de resolver o impasse, porque tínhamos parte do país e das Forças Armadas contra a posse.

Mas, para nós todos que tínhamos participado desde o primeiro momento, que nos expusemos até ao bombardeio aéreo do palácio, era uma traição. Tanto que o povo queimou, em plena madrugada, todas as faixas de saudação ao Jango.

Foi um período conturbado, mas de muitos descobrimentos. A ditadura nos deixou um legado que perdura até hoje, que é essa simulação de democracia, que nos fez confundir democracia com eleição direta.

A eleição direta é apenas o início da democratização, não é a democracia em si. Hoje temos partidos registrados que não têm diferença maior entre si, são aglomerados de pessoas em busca do poder e do prestígio político.

Depois do golpe de 1964, entrei na luta armada. Isso era a ruptura, a quebra, me rebelei, me insurgi contra o grande delito: a ditadura. Ela é o grande delito, seja do tipo que for, de esquerda, de direita. Ditadura é a subversão da ordem, do bom senso em todos os sentidos. A participação popular não existe, só a imposição.

Se a Legalidade não tivesse existido, se o movimento de rebeldia do Brizola não tivesse sido levado ao país inteiro pela Rede da Legalidade, nós teríamos tido a implantação da ditadura já em 1961, em pleno desenvolvimento da Guerra Fria, com todo o preconceito da época, o anticomunismo.

Seria a vitória dos preconceitos, que hoje retornam também pelos lábios do próprio presidente.

As pessoas que votaram de boa fé no atual presidente acreditaram e foram enganadas por Bolsonaro. O Bolsonaro candidato já apregoava violência, mas acho que boa parte do eleitorado acreditou no combate à corrupção, porque a Lava Jato tinha desnudado o grande conluio dos governantes com as grandes empresas.

Acho difícil que se possa reeditar o movimento da Legalidade, porque não temos condutores políticos como Brizola. Pode ser que surja, mas não é visível.

Hoje, em qualquer capital, que governador convoca o povo a resistir com ele e obtém uma resposta esmagadora da grande maioria? Nenhum. Se calcula que a praça da Matriz chegou a ter 50 mil pessoas em um momento.

Foram dias deslumbrantes de descobrimentos e de luta. Acho que perdura o grande exemplo do que foram esses dias, porque vivemos hoje uma situação muito difusa, em que as pessoas no poder relembram a ditadura. Que o povo nas ruas possa evitar um golpe é o grande legado da Legalidade.

A CAMPANHA DA LEGALIDADE E OS 14 DIAS QUE ABALARAM O PAÍS

25.ago.1961
Jânio Quadros surpreende e renuncia à Presidência, com sete meses de governo, enquanto o vice, João Goulart, está em visita à China
26.ago
É divulgado manifesto do marechal Henrique Lott a favor da posse do vice, contra a decisão do ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, e em defesa da Constituição
27.ago
O governador do RS, Leonel Brizola, requisita formalmente a rádio Guaíba e fala sobre a tentativa de golpe dos ministros militares contra a posse de Jango. Jânio embarca no navio Uruguai Star para Londres
28.ago
Uma mensagem é interceptada por militares da FAB com ordem de bombardeio ao Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. O general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, comunica a Brizola o apoio à Legalidade, contrariando Denys. Surgem os Comitês de Resistência Democrática
29.ago
O governador de Goiás, Mauro Borges, declara apoio à campanha liderada por Brizola
30.ago
O Exército destitui Machado Lopes do comando do 3º Exército
31.ago
Depois de viagem conturbada de retorno, com várias paradas, Jango chega a Montevidéu, capital do Uruguai, a 800 km de Porto Alegre
1º.set
Em Montevidéu, Jango negocia com Tancredo Neves e aceita o parlamentarismo para poder garantir a posse, contrariando Brizola. O vice chega à capital gaúcha no mesmo dia
2.set
A emenda constitucional nº 4 é aprovada no Congresso e institui o sistema parlamentarista
3.set
Ministros militares defendem que todos os subordinados acatem as determinações do Congresso em relação à aprovação do parlamentarismo
4.set
Operação Mosquito, de oficiais da FAB, pretendia abater o avião de Jango antes de chegar a Brasília. Brizola avisa que não irá à posse presidencial
5.set
Jango chega a Brasília, 11 dias depois da renúncia de Jânio
6.set
Jango começa a formar os gabinetes de seu governo
7.set
O vice toma posse como novo presidente, sem a presença de Brizola

Folha  

Assinatura
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