Polícia política de Bolsonaro caça mulheres que abortam

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Foto: Rafael Arbex /agencia estado

A história começa com um feto encontrado na rede de esgoto, no interior de São Paulo. Em seguida, a polícia recebe denúncia anônima sobre uma mulher que teria feito um aborto clandestino. Joana (nome fictício), 18 anos, é chamada à delegacia, mas fica em silêncio. A avó da adolescente, então, é chamada para participar do depoimento. Constrangida, Joana admite ter interrompido, com medicamentos administrados em casa, uma gravidez não desejada.

Com medo do sangramento, ela procurou o hospital mais próximo. Acabou denunciada. Dias depois da abertura do inquérito policial, exames atestaram que o feto não tinha qualquer ligação genética com Joana. Ela vivia em uma cidade pequena, que não teve o nome divulgado para preservar os envolvidos. O aborto virou assunto na vizinhança, assim como a mentira de que ela teria conexão com o feto encontrado pela polícia na rede de esgoto.

“Mesmo com o resultado dos exames, o promotor continuou com a denúncia, que virou uma ação penal. A denúncia se baseia na confissão, sem prova material. Não havia registro de que aquela mulher tinha estado grávida um dia ou feito um aborto”, relata Paula Machado, defensora pública da Coordenação do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, na Defensoria Pública de São Paulo.

Após pedido de habeas corpus, o Tribunal de Justiça de São Paulo arquivou a ação devido à falta de provas materiais. “A ideia é punir, mesmo sem lastro probatório. De alguma forma, a sociedade diz: você não vai sair impune dessa história. Em cidades pequenas, é ainda mais grave; muitas vezes, as mulheres precisam até se mudar”, observa Paula Machado.

Organizações não governamentais, como a Médicos Sem Fronteira, e órgãos como defensorias públicas e outras entidades ligadas à saúde da mulher destacam por que é importante discutir o tema como questão de saúde pública.

A punição do corpo das mulheres é buscada como um fim. Paula Machado

O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres acompanha anualmente casos de mulheres levadas à Justiça por interromper gestações. Entre 2019 e 2020, houve 30 processos relacionados a esse tema. Em 2021, somaram-se outros seis novos casos. Duas ações recentes terminaram arquivadas.

A defensoria também traça o perfil das mulheres que figuram como rés nesses processos. A maior parte delas está na faixa entre 16 e 41 anos e têm filhos. São negras, com baixa renda mensal, pouca escolaridade formal, sustentam sozinhas a família e vivem em periferias.

“Essa mulher procura o SUS para ter atendimento de saúde e é denunciada, vítima de um crime, que é a quebra do sigilo legal sem motivação idônea. Isso é ilegal, do ponto de vista do direito à saúde. Infelizmente, é algo bastante rotineiro no Brasil”, afirma Machado.

Nenhuma das mulheres tinha renda superior a R$ 2,5 mil por mês. Algumas foram submetidas a fianças maiores que seus salários. “O valor fica acima do montante médio estabelecido para outros crimes. Houve casos com até R$ 3 mil de fiança. Sem ter como arcar, elas ficam presas preventivamente”, observa a defensora.

Paulo Machado também destaca que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Portanto, uma confissão obtida via coerção pode ser questionada como prova em uma ação penal.

O hospital deve ser um ambiente de atendimento humanizado, não um alargamento da delegacia. Paula Machado

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro também monitorou, em 2017, processos enquadrados no art. 124 do Código Penal (“provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”), que prevê pena de detenção de um a três anos. Levantamento realizado pela Diretoria de Pesquisa e Acesso à Justiça da Defensoria chegou a conclusões semelhantes às de SP:

“Negra, mãe, pobre e sem antecedentes criminais. Este é o perfil das mulheres que respondem a processo criminal pela prática de aborto. O grupo analisado é pequeno, se comparado ao universo estimado em cerca de meio milhão de brasileiras submetidas anualmente a abortos clandestinos. São 42 mulheres que respondem criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros, no estado”, descreve a nota da defensoria.

Em pouco mais de 30% dos casos, a investigação policial que deu origem ao processo judicial foi fruto da denúncia de hospitais em que a mulher foi atendida por conta de intervenção malfeita.

Um dos casos brasileiros recentes mais emblemáticos de mulheres criminalizadas por abortar envolve duas histórias de vidas negras que se cruzaram em Petrópolis (RJ). Em 2018, Ingriane Barbosa, 30 anos, mãe de três, tentou abortar ao engravidar pela quarta vez e ser abandonada pelo namorado. Pediu ajuda à amiga Luciene de Sá, que indicou medicamentos para tentar a interrupção, sem sucesso.

Por fim, elas usaram um método tão popular quanto perigoso: introduzir um talo de mamona na vagina para provocar aborto. Ingriane sentiu-se mal, demorou dias para procurar um hospital por medo de ser presa, teve infecção generalizada e acabou morta. Luciene foi para o banco dos réus.

A denúncia nesse caso também partiu de um hospital. “Isso também acontece com mulheres que têm aborto natural. Profissionais de saúde podem entender que se trata de aborto provocado e denunciar essas mulheres. Muitas vidas poderiam ser salvas se pudéssemos garantir o cumprimento do direito ao sigilo médico”, reforça uma das advogadas que trabalhou na defesa de Luciene, Luciana Boiteux.

Em 2018, Luciene teve prisão preventiva decretada. Ficou semanas na cadeia e depois recebeu prisão domiciliar por ter uma filha de 2 anos à época. Por dois anos, Luciene não podia sair para trabalhar ou levar a menina, que cria sozinha, à escola. Ela teve ajuda de uma irmã que a abrigou. “Mãe e filha ficaram confinadas por dois anos”, diz a advogada.

O julgamento de Luciene ocorreu em março de 2021, com plenário quase vazio, por causa da pandemia. “A gente esperava que, numa cidade tão conservadora, imperial, a cidade onde quebraram a placa de Marielle, cheia de monarquistas e conservadores, Luciene seria massacrada”, relata Luciana Boiteux.

A defesa traçou uma estratégia ousada: defender que a criminalização do aborto torna o Estado responsável pela morte de mulheres que tentam interromper uma gravidez de forma clandestina.

“O julgamento caminhou de forma muito interessante. Foram ouvidas testemunhas que contaram a história de vida daquelas mulheres. Luciene passou por muitas dificuldades, chegou a morar na rua. Ingriane foi abandonada pelo namorado quando estava grávida”, descreve a advogada.

A defesa também argumentou, com base em prontuários médicos, que o fato de Ingriane ter demorado a procurar um hospital foi determinante para que ela perdesse a vida.

“Luciene não foi responsável pela morte de Ingriane, ela tentou ajudar outra mulher. Esse peso moral que se coloca sobre as mulheres é que matou uma mulher, que deixou três filhos. Se estivesse viva, Ingriane também estaria ali sendo julgada, também teria sido presa e separada de seus filhos pequenos”, defende Boiteaux.

O júri considerou Luciene culpada, por 4 votos a três. “Do ponto de vista jurídico, não ganhamos, porque ela foi condenada. Mas é um placar apertado que sinaliza uma sensibilização”, avalia a defesa.

Luciene saiu livre da sala de julgamento, pois já havia cumprido os dois anos de prisão determinados como pena. Em uma das primeiras fileiras do tribunal, estava a irmã de Ingriane, que hoje cuida dos três sobrinhos. As duas se abraçaram e choraram. “Sou advogada criminal e nunca tinha me emocionado tanto em um júri, pelas histórias das mulheres envolvidas. É uma realidade cruel, que só atravessa pessoas como Luciene e Ingriane.”

No vídeo abaixo, Ingriane foi lembrada durante seção do STF para discutir a descriminalização do aborto:

O projeto Milhas pela Vida das Mulheres oferece assistência a pessoas que precisem de um aborto legal ou tenham seus direitos desrespeitados, de alguma maneira, por questões relacionadas a uma gravidez indesejada. “Muitas ações são judicializadas, mas nós estamos atuando e obtendo resultados para que os casos não cheguem a esse extremo. Recebemos muitas denúncias de má conduta dos hospitais e os notificamos”, descreve Juliana Ries, responsável pelo coletivo.

Queremos inverter o jogo. É o fundamentalismo que tem que estar no banco dos réus. Juliana Reis, do Milhas pela Vida das Mulheres

Serviço

Milhas Pela Vida das Mulheres

(21) 98855-0675 (WhatsApp)

milhaspelavidadasmulheres@gmail.com

Dia 28 de setembro foi o Dia Internacional do Aborto Seguro. A ONG Médico Sem Fronteiras também lembrou a data:

Metrópoles  

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