Professora de Harvard diz que dados científicos complicam Bolsonaro

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Foto: Academia Brasileira de Ciências/divulgação

A ciência não vai oferecer uma prova de “causalidade” entre a má gestão da pandemia e o grande número de mortes que ela causou no Brasil, mas estudos técnicos oferecem uma “coleção de evidências” e um “argumento muito forte” para julgar os responsáveis. Essas são as palavras que a demógrafa Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, usa ao refletir sobre as 600 mil mortes de Covid-19 ocorridas no Brasil.

Autora do mais detalhado estudo feito sobre a dispersão do coronavírus no país, ela afirma que existe “negação” por parte do governo federal na importância da ciência.

— A gente voltou atrás mais de 100 anos e não fez o que tinha que ter sido feito.

A cientista apresenta nesta sexta-feira uma conferência na Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências, tentando explicar por que o Brasil lidou tão mal com a pandemia. Em entrevista ao GLOBO antes do evento, ela explica que a ciência (e a justiça) podem montar um “quebra-cabeça” para entender o que aconteceu no Brasil até aqui na pandemia.

Sobre o que é sua conferência na reunião magna da ABC?
O título da palestra é “Da Febre Amarela à Covid-19: O Papel da Ciência na Saúde Pública Brasileira”. Eu mostro três períodos ao longo do tempo no Brasil. Houve primeiro momentos em que a ciência sabia pouco, então não sabia o que fazer. Depois houve momentos em que a ciência impulsionou a mudança, como deveria ser. Mas depois chegamos na Covid-19, quando a informação cientifica estava disponível, mas foi ignorada e negada.

Falo no início da febre amarela [séculos 19 e 20], quando a infraestrutura não estava presente. Não existia drenagem, não existia esgoto, o Rio de Janeiro era cheio de epidemias, como malária, varíola etc. E existia uma discriminação. Existiam muitos cortiços na cidade nessa época, e achavam que o cortiço era o começo de tudo, era a fonte de todas as epidemias que tinham na cidade, como a febre amarela.

Nessa época havia também uma noção de que o brasileiro que trabalhava no interior era preguiçoso, não trabalhava, não contribuía para o desenvolvimento do país. Era um conceito que vinha da Inglaterra, culpando o pobre por ser pobre. Mas aí vieram as expedições de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas pelo interior do Brasil, Nordeste e Amazônia. E eles contestaram isso, mostraram que aquelas pessoas estavam doentes.

O Brasil rural era cheio de malária, doença de chagas, sífilis, lepra, leishmaniose. Essas pessoas não tinham como trabalhar direito, doentes, sem apoio do governo. A célebre fala do Miguel Pereira em 1916 é a de que ‘o Brasil rural é um grande hospital’.

Carlos Chagas e Oswaldo Cruz deram o primeiro passo para levar a ciência em conta. Eles mediram e mostraram o problema. Isso mudou toda uma postura de discriminação e de eugenia. E foi aí que surgiu, na verdade, o movimento sanitário no Brasil.

Naquele momento o conhecimento científico foi reconhecido como importante para promover uma mudança que ajudasse no no desenvolvimento do país. E essas condições adversas de saúde e condições sanitárias foram vistas também como um problema social e econômico.

Isso continuou até o HIV, nas décadas de 1980 e 1990?
O programa de HIV/Aids no Brasil reconheceu a importância da ciência que estava sendo desenvolvida na época, lidando com uma doença nova. E juntando a ciência com a mobilização social o Brasil acabou desenvolvendo um programa de controle de HIV/Aids que virou modelo.

Depois falo da Covid-19, também uma nova doença, mas uma pandemia numa escala nunca vista nas nossas vidas, com perguntas demandavam respostas imediatas. Mas começa ai então também uma discussão de como a informação que está sendo gerada é usada, comunicada e manipulada. E, infelizmente, no Brasil, ela foi ignorada e acabou por gerar uma situação muito pior do que a que poderia ter sido. Aí eu eu faço uma comparação: e se o conhecimento tivesse sido usado como foi feito quando o Oswaldo Cruz e o Carlos Chagas trouxeram esse conhecimento?

A gente conseguiu desenvolver uma vacina em 9 meses. Isso nunca aconteceu antes. E apesar de todo esse progresso em gerar conhecimento e gerar soluções para os problemas de emergência de saúde pública, a gente voltou atrás mais de 100 anos e não fez o que tinha que ter sido feito.

A sra. acha que agora, depois de um ano e meio de Covid-19, gestores públicos começam a tomar o rumo certo?
Eu não acho que tenha mudado muita coisa no nível federal. A negação continua lá. A gente vê todo dia na CPI da Covid-19. Vimos isso na visita da comitiva do Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas aqui nos EUA. Não mudou, e eu não acho que vá mudar, porque o discurso foi assim desde o começo. É difícil entender por que pessoas no governo federal não se vacinaram, mas isso faz parte do discurso. Tomar a vacina seria uma forma de reconhecer que a Covid-19 não é só uma gripezinha.

Se estamos chegando a 600 mil mortos e até aqui se passaram menos de 600 dias desde o primeiro caso no Brasil, tivemos uma média de mil mortes por dia. Isso são 5,5 aviões da ponte aérea Rio-São Paulo caindo todo dia. E a gente não tem uma comoção. O que o que eu esperava é que houvesse uma comoção e uma reação.

Talvez tenha tido uma reação, meio tardia, que também não fez efeito, porque nada parece fazer efeito contra esse discurso negacionista, que tem como consequência a perda de vidas. É revoltante. Eu esperava que pelo menos a gente pudesse ter alguma reação no Ministério da Saúde, mas infelizmente a liderança que a gente tem ali não dá respostas com ciência, como a gente viu no passado.

A ciência vai oferecer evidências para responsabilizar as autoridades que foram responsáveis pela tragédia?
Em ciência, você pode fazer estudos que medem associações e pode fazer estudos que medem causalidade. Fazer um estudo tentando medir o efeito causal das medidas erradas é muito complicado. No estudo que a gente publicou na revista Science, a gente mostra como foi a dispersão do vírus, fizemos uma análise comparativa entre diferentes áreas e vimos que a história não é a mesma nas diferentes localidades. Depois, começamos a olhar para as coisas que a gente sabe que importam em todas as doenças: a desigualdade, a oferta de insumos de saúde, a disponibilidade de hospitais…

O que é viável fazer é tentar ver em quais comparações essas coisas todas convergem, mas ainda assim você vê diferença de desempenho, como aquela que ocorreu entre o Norte e o Nordeste. Quando você olha para as desigualdades, imagina que o impacto deveria ter sido similar nessas regiões, mas não foi. [O Norte foi mais impactado.] Estudos comparativos em que você vê esse detalhe como se tivesse passando uma lupa permitem ver situações que mostram isso. Eles mostram que o que faz a diferença é como as ações foram tomadas, em que momento elas foram tomadas e com que intensidade foram tomadas.

Esse tipo de estudo não é causal, mas é uma análise comparativa poderosa, se for feita com cuidado e feita trazendo tudo aquilo que a gente sabe que faz diferença num lugar desigual como o Brasil. Se a gente considera todas essas variáveis e, ainda sim, a gente vê que duas ou mais áreas têm vários fatores negativos semelhantes e têm performance diferentes, o que que tá faltando olhar? Aí entram as questões comportamentais, as decisões, a implementação das políticas, e a gente começa a trazer um pouco de luz para esse grande quebra-cabeça. Você vê que tem decisões que fazem a diferença. Isso a gente pode fazer, e isso a gente tem que continuar a fazer. Mas se as pessoas quiserem um estudo causal, não tem como. Não dá para fazer.

Se a justiça brasileira ou o tribunal de Haia quiserem responsabilizar governantes, terão de recorrer a dados fora da ciência, então? O que a sra. acha do trabalho da professora Deisy Ventura, da USP, que analisou o discurso negacionista do presidente?

O trabalho da Deisy levou em conta as legislações, o discurso e juntou tudo isso. Além disso, a gente pode mostrar a maneira com que a doença se espalhou. Ela não se espalhou de forma igual, e isso tem a ver com a forma, a intensidade e o momento em que decisões foram tomadas. Tem a ver com o alinhamento ideológico e político que o tomadores de decisão locais têm com o governo federal. Isso a gente consegue mostrar, e você tem que juntar essas peças todas.

Então é o caso de imaginar que para você ter um processo chegando no tribunal de Haia você precisa de causalidade? Não é. É só você olhar tudo que já foi investigado. Essas evidências todas juntas mostram um contexto em que é inevitável… com tudo o que está sendo discutido na CPI.

Não acho que é preciso ter um estudo causal. Tem outras coisas que a gente pode fazer, como o nosso estudo da redução da expectativa de vida. Por que ela caiu no Brasil mais que em outros lugares? Tem o estudo do excesso de mortalidade. Existe uma coleção de evidências que, ainda que não sejam causais, montam um argumento muito forte. Muito forte.

O estigma de espalhadores da Covid-19 dos apoiadores de Bolsonaro não atrapalhou o combate à doença, da mesma forma que o estigma atrapalhou a política do HIV no passado?
O HIV tinha uma questão comportamental, que envolvia de mudança de atitude, de usar camisinha etc. Como eram grupos vulneráveis que estavam se infectando no começo, foi diferente daquilo que acontece na Covid-19. No início, por muito tempo, o HIV era associado aos homens em relacionamento com homens, aos que usavam droga, mas ninguém sabia mesmo como é que era [antes da descoberta do vírus]. Depois a ciência avançou, mas o estigma continuou um problema. Ele vem associado com discriminação, culpando certos grupos vulneráveis.

Com a Covid-19, o que acontece é que o comportamento muda a exposição da pessoa ao vírus. Se você resolve usar máscara porque o presidente diz que você não precisa usar máscara, essa é uma decisão particular sua, mas que afeta todo mundo. É egoísmo não usar máscara, e é egoísmo não tomar vacina porque isso vai afetar não só você, mas a comunidade. Isso tem um caráter diferente do que aquilo que acontece no HIV.

No caso da Covid-19, a informação estava sendo veiculada, mas você tinha um conflito: a mensagem que vem do nível federal é uma, e a mensagem que vem dos cientistas, de alguns governadores, de alguns prefeitos é outra. Não ocorreu uma campanha de comunicação em massa para conscientização, como a gente teve na época da do HIV. Ali eram campanhas pesadas que apareciam o tempo todo, e as pessoas entendiam o que era o problema. Agora na pandemia, a gente não teve isso. Foi só recentemente que começou a surgir anúncio com o Zé Gotinha. Tinha que ter começado lá em fevereiro de 2020, antes do primeiro caso. Então, para muitas pessoas, tomar decisão e decidir o que era certo e o que era errado ficou difícil. O volume de informação errada que estava circulando era uma loucura, uma ‘infodemia’.

Os cientistas e as associações médicas não conseguiram, então, se sobrepor à figura do presidente?
Quando você fala em associações médicas, infelizmente a gente viu no Brasil vários médicos e várias associações alinhadas com a ideologia vinda do governo federal e que defenderam tratamento precoce. Aqui nos EUA a situação foi um pouco diferente. Isso aconteceu, e melhorou muito depois que o Trump saiu, mas os EUA também têm uma tradição do movimento antivacina muito forte. No Brasil não é assim. Tem lugares aqui nos EUA que simplesmente não conseguem aumentar mais a cobertura vacinal.

No Brasil não é esse o problema. O problema é que a gente demorou muito para adquirir vacinas. A gente deveria ter começado a vacinar mais cedo e muito mais rápido. A gente já poderia estar com uma cobertura vacinal muito maior. Além da vacina é preciso ter essa conscientização de que usar máscara e que essas medidas afetam o coletivo. A gente sabe o que fazer.

Com a queda da popularidade do presidente nas pesquisas de opinião, a influência dele sobre o comportamento das pessoas também deve mudar?

Não sei se está mudando. Eu tenho conversas com colegas que estão no Brasil agora, e me contam que tem muita gente pensando que a coisa já acabou, não usando mais máscara… Eu vejo no noticiário o que está acontecendo em estádios de futebol, por exemplo. Parece que as atividades voltaram todas ao normal, e isso me preocupa um pouco, porque a Covid-19 ainda não acabou. A gente ainda precisa ter cuidado. Eu cresci vendo jogo de futebol, sei como é. Você vai colocar a torcida lá e pedir para a pessoa ficar quieta e afastada na hora de comemorar o gol?

Ainda não é o momento de a gente voltar a uma situação pré-pandemia em que você podia circular à vontade, entrar no transporte público, ficar em locais fechados, tirar máscara. A gente ainda está tendo de 600 a 700 mortes por dia. Essa normalização das mortes é um negócio que aconteceu no ano passado. É número que é mostrado, e as pessoas não se sensibilizam mais. Mas é um número extremamente alto, inaceitável e horrível.

O Globo 

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