Brasilianista analisa aliança Lula-Alckmin
A crise financeira de 2008, que marcou o fim da experiência da terceira via iniciada por Tony Blair nos anos 1990 e o início da ascensão dos movimentos de extrema-direita na década de 2010, mergulharam a esquerda global numa longa travessia experimentalista.
Na Europa, dois modelos competiram eleitoralmente e conheceram destinos diferentes. Jean-Luc Mélenchon e Jeremy Corbyn seguiram o caminho trilhado por Pablo Iglesias, líder do Podemos na Espanha, e apoiaram-se nas teses de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que caracterizam o embate político como a oposição entre o povo e a elite. Os primeiros resultados foram encorajadores.
Transfúgio dos socialistas e herdeiro putativo de François Mitterand, Mélenchon quase chegou ao segundo turno das presidenciais francesas em 2017 com seu novo partido, a França Insubmissa. Nesse mesmo ano, Corbyn, que assumiu o partido trabalhista britânico traumatizado pela Guerra do Iraque em 2015, chegou perto de ameaçar a hegemonia conservadora nas eleições.
Na Espanha, o Podemos anunciava a iminente realização do “sorpaso”, ou a tão aguardada ultrapassagem do Partido Socialista Operário Espanhol. Parecia inevitável o triunfo dessa nova geração de líderes e partidos, que prometia enterrar o modelo social-democrata dominante na Europa desde os anos 1960.
Para a surpresa de todos, o projeto da “esquerda de ruptura” não sobreviveu a um ciclo eleitoral. Mélenchon jamais conseguiu assumir a liderança da oposição contra Emmanuel Macron. A esquerda francesa, que até 2017 era a opção de 40% do eleitorado no primeiro turno, hoje mal consegue reunir um quinto dos votos. Em 2019, Corbyn caiu na armadilha de fazer da sua eleição contra Boris Johnson um referendo sobre o Brexit e viu os trabalhistas perderem até nos bastiões que controlavam desde a Segunda Guerra Mundial.
A “esquerda de coalizão” surgiu como contraponto à “esquerda de ruptura’” de Corbyn e Mélenchon.
Ela tem como premissa, primeiro, que a radicalização da direita deve ser combatida pela afirmação dos valores tradicionais da social-democracia e particularmente do poder transformador do Estado social. Segundo, ela estabelece que os partidos do mesmo campo ideológico devem trabalhar juntos para manter suas maiorias eleitorais, em vez de competir entre eles e contribuir para a fragmentação do sistema político.
Os socialistas ibéricos seguiram esse caminho a partir de 2015. O português António Costa e, mais tarde, o espanhol Pedro Sanchez romperam com a lógica hegemônica de seus respectivos partidos e buscaram alianças para formar um programa pró-europeu que apostava na modernização do Estado e na defesa de valores humanistas. O sucesso da esquerda de coalizão, conhecida popularmente como “geringonça” em Portugal, eventualmente esvaziou o projeto de poder da esquerda de ruptura.
Um processo semelhante se desenrolou na Alemanha. O SPD do agora chanceler Olaf Scholz passou grande parte da última década disputando o eleitorado de esquerda com o Die Linke, terceira maior força política do país depois da eleição de 2013. Na eleição deste ano, o partido fundado em 2007 e considerado um predecessor do Podemos nem conseguiu entrar no parlamento.
Toda essa história foi acompanhada de perto pelos líderes da esquerda nas Américas. Bernie Sanders construiu o seu movimento a partir de 2008 seguindo a linha experimentalista da esquerda de Mélenchon e Corbyn, a quem ele é sempre comparado. No caso do Brasil e do Partido dos Trabalhadores, o contexto de agravamento da crise democrática e dos sucessos eleitorais de Corbyn e Mélenchon, uma ala do partido assumiu abertamente a sua preferência pela esquerda de ruptura.
Em artigo de junho de 2018, o senador petista Lindbergh Farias cita o “discurso contundente” do britânico, e o “radicalismo patriótico” do francês como exemplos de que é possível “disputar as massas em pé de igualdade”. Dentro do partido, o processo de designação de Fernando Haddad a candidato a presidente nesse mesmo ano foi a primeira etapa da disputa entre as duas visões do futuro da esquerda. Ela culmina no debate sobre a federação com o PSB e a escolha de Geraldo Alckmin para compor a chapa presidencial em 2022.
Lula faz parte de uma geração que viu as transformações da esquerda na última década com as lentes da história. Ele assistiu à guinada neoliberal de François Mitterand nos 1980, vivida como uma traição pela esquerda tradicional, a ascensão e queda da terceira via idealizada por Anthony Giddens e encarnada por Tony Blair, e a trajetória de sucessos e fracassos da onda rosa na América Latina. Sobretudo, Lula viu com seus próprios olhos, na sua última viagem à Europa, a ruína da esquerda francesa e a reconstrução do SPD na Alemanha.
Ao abrir a negociação com Alckmin e buscar a aliança com o PSB, Lula aposta no modelo da esquerda de coalizão que derrotou a direita e a extrema-direita. A decisão é traumática porque ela obriga o PT a abdicar do seu destino hegemônico, mas a experiência europeia dita que o processo de federação com o PSB e o PC do B é tão importante como o acordo individual com Alckmin.
Do ponto de vista nacional, a composição desenhada por Lula é uma revolução republicana, porque ela impulsiona a reconstrução do sistema partidário e assegura o regresso dos democratas ao poder. Do ponto de vista global, uma eventual “geringonça brasileira” marcaria a vitória definitiva da esquerda de coalizão sobre a esquerda de ruptura.
Folha de SP