Exército tentou interferir em julgamento no Supremo

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Foto: Pedro Ladeira – 16.ago.21/Folhapress

Documentos apontam que o Exército tentou driblar o STF (Supremo Tribunal Federal) para inviabilizar o julgamento da corte sobre a revogação de três portarias publicadas em abril do ano passado que aumentavam os mecanismos de controle e rastreamento de armas de fogo e munições.

Em maio daquele ano, o PDT acionou o Supremo contra a medida.

O Exército prometeu editar novas portarias que substituiriam as revogadas e teriam o mesmo objetivo de melhorar o controle sobre armas e munições. As normas só foram publicadas em 16 de setembro deste ano, um dia antes da análise da ação apresentada pelo partido no STF.

Documentos mostram, entretanto, que as novas regras ficaram prontas em dezembro de 2020 e permaneceram paradas na mesa do Comando do Exército por quase dez meses, até setembro de 2021.

Os papéis obtidos pelo Instituto Sou da Paz foram compartilhados com a Folha.

A publicação coincidiu com a data da apreciação do tema na corte. Para especialistas, a cronologia dos fatos leva ao entendimento de que os militares tentaram inviabilizar o julgamento, uma vez que publicaram novas regras um dia antes.

Do ponto de vista jurídico, porém, a manobra do Exército não teve sucesso, uma vez que o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, deu uma decisão individual para restabelecer a vigência das regras anteriores. Ele argumentou violação do princípio da impessoalidade, moralidade e interesse público.

O caso foi remetido ao plenário, mas foi interrompido por pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques.

O regimento interno da corte prevê que os magistrados devem devolver os processos em que solicitam mais tempo para analisar em 20 dias. É comum, porém, que os ministros desrespeitam o prazo. Até o momento, Kassio ainda não liberou o caso para novo julgamento.

O Ministério da Defesa e o Exército foram procurados, mas não se manifestaram até a conclusão desta reportagem.

Para especialistas, a decisão de publicar novas portarias que aumentavam o controle das armas e munições às vésperas do julgamento do STF que iria discutir a legalidade das normas ocorreu possivelmente para tentar impedir o julgamento da matéria.

Na avaliação de Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz, o fato de essa nova portaria ter ficado na mesa do Exército parada e só ter sido publicada na véspera do julgamento aponta que a instituição não tem compromisso real com uma política sobre o rastreamento de armas e munições.

“Na minha visão, o interesse do Exército não é de aprimorar o sistema, mas de atrapalhar os julgamentos em curso e não dar uma resposta séria para o problema de armas e munições. Parece uma tentativa de esvaziar o voto do ministro Alexandre de Moraes”, disse.

Para Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o documento aponta que havia uma decisão do governo federal de retardar a entrada em vigor dessas portarias que trariam mais controle ao rastreamento.

Para ele, as três portarias nem deveriam ter sido revogadas em abril do ano passado. Isso porque elas foram frutos de um acordo entre o Exército e o MPF (Ministério Público Federal).

Desde a decisão do Exército e de Jair Bolsonaro de abril de 2020, MPF e TCU (Tribunal de Contas da União) investigam a revogação das normas. O Exército chegou a dar quatro justificativas diferentes para a revogação.

As portarias, publicadas na véspera do julgamento no STF, deviam ter sido publicadas pelo Exército em novembro de 2020. Isso porque o TCU cobrou a publicação de novas regras.

Após o pedido, o Exército enviou uma manifestação no dia 31 de julho de 2020 com o compromisso de editar novas portarias. “As propostas serão levadas para autoridade competente para edição do ato normativo, o que deverá acontecer, provavelmente até o mês de novembro de 2020”, afirmou no documento o comandante logístico do Exército, general Laerte de Souza Santos.

O Instituto Sou da Paz protocolou o documento no TCU para questionar por que a portaria que previa mais ferramentas de controle das armas ficou parada por tanto tempo nas Forças Armadas. Eles foram anexados ao inquérito sobre a conduta do comando do Exército no episódio.

Como a Folha tem mostrado, a revogação de três portarias pelo Exército impedia o Brasil de aprimorar as regras de rastreamento e identificação de armas de fogo e munições. Na época, Bolsonaro anunciou em redes sociais que havia ordenado a anulação das normas. O presidente afirmou que elas não se adequavam a “diretrizes definidas em decretos” sobre armamento.

As novas portarias publicadas em setembro deste ano, que substituiriam as revogadas, só entrariam em vigor em março de 2022. Na visão de Carolina Ricardo, elas são mais brandas.

Das portarias revogadas, uma criava o Sisnar —um sistema de rastreamento de produtos controlados pelo Exército. A segunda determinava que a arma precisa conter, por exemplo, nome do fabricante, calibre e número de série. A outra estabelecia o controle de marcação de embalagens e cartuchos de munição.

Essas novas portarias mantêm o Sisnar, por exemplo, mas retiram outros pontos importantes. Foi suprimida, por exemplo, a possibilidade de venda de munições em lotes de mil unidades, que estava presente na portaria de 2020. Dessa forma, é mantida a venda a lotes máximos de 10 mil unidades.

A obrigação de que CACs (colecionares, atiradores e caçadores) usassem estojos marcados, que permitissem o rastreamento, também foi abandonada.

As portarias que aumentam o controle de armas e munições são fundamentais para o esclarecimento de crimes e para rastrear transferências do mercado legal para o ilegal, ainda mais em um contexto de aumento da circulação de armas no país.

De dezembro de 2020 a setembro de 2021, período em que as novas portarias ficaram paradas sem a publicação, mais de 300 mil armas foram compradas por pessoas físicas no país, segundo dados da Polícia Federal.

Não ter esse sistema também colabora, segundo especialistas, com a atuação do crime organizado e de milícias, uma vez que fragiliza trabalhos de investigação da polícia.

Folha de S. Paulo

 

 

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