Fome pós-pándemia aumentou mais no Brasil que no resto do mundo
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
É um problema mundial, agravado pelos impactos socioeconômicos da pandemia de covid-19: a fome aumentou no mundo. Mas, no Brasil, apontam números e especialistas, a situação é particularmente grave, com o aumento da pobreza e a diminuição da comida no prato sendo um fenômeno que começou bem antes da atual crise sanitária.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela REde Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), divulgado em 2021, indicou que 55,2% dos lares brasileiros vivenciavam um cenário de insegurança alimentar — um aumento de 54% em relação a 2018, quando esse percentual era de 36,7%.
Ou seja: 116,8 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a comida.
A ideia de segurança alimentar foi cunhada logo após a 1ª Guerra Mundial. Atualmente, classifica-se como insegurança alimentar leve quando há indisponibilidade de algum alimento básico; moderada quando a pouca disponibilidade ou variedade afeta o indivíduo do ponto de vista nutricional; e grave quando não é possível fazer nenhuma refeição durante um dia ou mais.
De acordo com o levantamento da Penssan, 9% da população brasileira — 19,1 milhões de habitantes — vivenciam essa situação mais grave.
Para o economista Renato Maluf, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e coordenador da Rede Penssan, “a pandemia de covid-19 agravou esse quadro, mas não é sua causa primeira”.
Ele pontua como início desse momento de retorno à fome e à insegurança alimentar a crise econômica iniciada 7 anos atrás e a crise política com o processo de impeachment do governo Dilma Rousseff. “Deles [desses 2 episódios] resultaram comprometimento do acesso aos alimentos em razão do desemprego crescente, precarização do trabalho, baixa remuneração, retirada de direitos sociais e o progressivo desmonte de políticas públicas”, enumera.
Um levantamento da Penssan a partir de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) corrobora essa situação. Em 2013, 77,1% dos lares brasileiros estavam em situação de segurança alimentar — um recorde da série histórica. Em 2018, o percentual já havia caído para 63,3% — um recuo para patamar semelhante ao de 2004. E a curva segue em movimento descendente.
A nutricionista Sandra Chaves, professora na Universidade Federal da Bahia e vice-coordenadora da Penssan, afirma que “a pandemia revelou a fome que já se apresentava para parcelas significativas da população brasileira”.
Ela analisa que o fenômeno foi causado por “um conjunto de ações que anunciavam piora nas condições de vida dos brasileiros”. “Reforma trabalhista, piorando a empregabilidade, reduzindo direitos sociais vinculados ao trabalho, gerando desemprego e precarização do trabalho com redução de renda; paralisia de políticas sociais relevantes para o país”, cita a professora.
O economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais FGV Social, concorda que “a extrema pobreza baseada em renda aumentou em todos os anos [mais recentes]” e diz que “isto se deveu à grande recessão brasileira, aumento de desigualdade de renda do trabalho e enxugamento de programas sociais, tipo Bolsa Família”. “A pandemia é uma etapa nesse processo”, comenta.
Dados da FGV Social mostram que em 2019 11% dos brasileiros viviam em situação de pobreza — ou seja, com pouco mais de R$ 260 por mês. Este valor considera um salário mínimo dividido por 4,6 pessoas — o tamanho médio de famílias pobres brasileiras.
Em agosto de 2020, o chamado “auge do auxílio emergencial” por conta da pandemia, essa pobreza extrema havia caído para 4,8% da população. Dados mais recentes, de novembro de 2021, indicam um aumento para níveis superiores ao pré-pandemia: 13% dos brasileiros estão nesta situação de miséria.
De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), a insegurança alimentar grave chegou a patamares perigosamente altos depois da pandemia de covid-19. Dados do Programa Mundial de Alimentos divulgados em novembro apontam que 45 milhões de pessoas estão passando fome em 43 países do mundo — em 2019, eram 27 milhões.
A ONU pede para que governos e sociedades civis se unam a fim de mitigar esse cenário, insistindo em uma meta antiga de que a fome seja erradicada do planeta até 2030.
Para o economista Neri, está claro que o aumento da fome no Brasil ocorre em níveis mais intensos do que em outros países. Ele atenta para o fato de que, segundo pesquisa elaborada pela FGV Social a partir de dados da Gallup World Poll, se 17% dos brasileiros declaravam não ter dinheiro para comprar comida em 2014, quando o Brasil saiu do chamado Mapa da Fome da ONU, o número atual é de 28%. O retorno do país ao rol da insegurança alimentar da ONU se deu em 2018.
De acordo com o levantamento da FGV Social, em 2014, o Brasil ocupava a 36ª posição em um ranking de insegurança alimentar com 145 países, e agora está na 80ª. Para Neri, essa queda do país no ranking é “inaceitável na chamada ‘fazenda do mundo”.
O fato de a produção de alimentos brasileira aumentar ao mesmo tempo que a comida falta no prato é um contrassenso que não escapa da análise do sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“A fome que voltou a infelicitar os brasileiros, a ponto de se tornar um problema de saúde pública, não é resultado da pandemia, mas de políticas deliberadas que inviabilizam a agricultura familiar e subordinam a produção do campo aos interesses do agronegócio”, explica ele.
“Enquanto o desemprego explodia e a fome atingia pouco mais de 19 milhões de pessoas [segundo a rede Penssa], o PIB do agronegócio conheceu uma expansão recorde de 24,31% em 2020 [conforme dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada]”, compara o sociólogo.
Segundo Mendes, “não sofremos com falta de produção, mas com o abandono dos brasileiros”. “Não houve interesse por parte do governo em proteger os vulneráveis e combater a fome”, afirma.
Ele ressalta que o que ocorreu foi uma série de perdas de “proteções dos trabalhadores e dos humildes”. “Desregulamentações, ausência de políticas e de planejamento, defasagem na cobertura do Bolsa Família. Isso, somado ao desemprego crescente e a diminuição da renda, trouxeram ao cenário atual”, enumera.
Para os especialistas, a solução para esse problema passa por um conjunto de medidas — “políticas públicas que implicam em trabalho-renda-produção de alimentos-acesso aos alimentos”, define a nutricionista Chaves.
O Auxílio Brasil, programa recém-criado pelo governo federal, nesse sentido ajuda como algo emergencial. “Qualquer programa emergencial de transferência de renda pode ser um paliativo emergencial em momentos de crise como este em que vivemos”, ressalta Chaves “As famílias precisam ter alguma segurança de que poderão alimentar seus filhos neste momento difícil.”
Neri define o programa como “simplista” porque “complexifica as condicionalidades do Bolsa Família”, “anda para trás na focalização e estabilidade” e “tropeça nos efeitos de longo prazo”.
“Tenta ser um novo auxílio emergencial e ao mesmo tempo mudar a estrutura de benefícios. Gera muita confusão”, argumenta. “Pode funcionar eleitoralmente mas não leva em conta o tamanho nem o grau de pobreza da família. A política social perde foco e durabilidade e ‘ganha’ oportunismo eleitoral.”
Maluf compara os auxílios criados durante a pandemia. “Tanto o auxílio emergencial quanto o Auxílio Brasil foram importantes pela transferência de renda, que amenizou a grave situação de milhões de famílias, porém foram mal desenhados e não tiveram a amplitude necessária”, contextualiza.
“O auxílio emergencial teve seu valor aumentado pelo Congresso, a contragosto do governo, teve curta duração e foi interrompido por não ter previsão orçamentária suficiente”, prossegue ele.
“O Auxílio Brasil pretende ser um programa sem o improviso do anterior, mas é igualmente mal desenhado, não pode ser considerado propriamente uma política social e não consegue disfarçar o propósito eleitoreiro ao substituir o programa exitoso, o Bolsa Família, por uma marca própria.”
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