Leis brasileiras criminalizam preconceitos como o racismo
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Apesar de a liberdade de expressão ser um direito fundamental, ela é limitada pela própria legislação brasileira. Entre os motivos de restrição estão situações que incluem condutas que promovem a discriminação de certos grupos ou segmentos da população.
O direito brasileiro está alinhado a sistemas legais da Europa continental, como o da Alemanha. Já nos Estados Unidos, o Judiciário oferece uma maior proteção à liberdade de expressão, e mesmo discursos discriminatórios são tolerados desde que não configurem uma ameaça iminente à sociedade.
A defesa feita pelo apresentador Bruno Aiub, o Monark, de que nazistas deveriam ter o direito de ter um partido e que antijudeus podem se manifestar dessa maneira, foi amplamente criticada e provocou seu desligamento da empresa de que era um dos sócios. Uma fala do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) no mesmo programa fez com que políticos decidissem entrar com representação contra ele no Conselho de Ética da Câmara.
Nesta quarta (9), o comentarista da Jovem Pan Adrilles Jorge foi demitido após gesto associado por uma parte do público ao nazismo depois de comentar o caso de Monark. Ele nega qualquer alusão ao nazismo e diz que apenas deu tchau.
Entenda o que pode caracterizar discriminação e os limites da liberdade de expressão no Brasil:
O que é discurso de ódio? Não há uma definição na legislação brasileira, mas existem diferentes leis – nacionais e internacionais– que envolvem a criminalização de condutas como a discriminação a determinados grupos e segmentos da população por questões raciais, sociais, étnicas e religiosas.
O que diz a Constituição? Prevê a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
A Carta também diz que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais e que o racismo é crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
O que diz a lei sobre crime de racismo? O artigo 20 da Lei 7.716, de 1989, diz que é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
A pena é de reclusão de um a três anos e multa, que aumenta para dois a cinco anos, quando praticado por intermédio de meios de comunicação ou publicações.
No Judiciário, há o entendimento de que só se aplicaria o crime de racismo em caso de a conduta atingir uma coletividade, deste modo, casos de racismo que sejam entendidos como dirigidos a uma pessoa específica acabam sendo enquadrados como crime de injúria racial.
Tal diferenciação é criticada por especialistas no tema que entendem que injúria racial é racismo. No ano passado, o STF decidiu que a injúria racial é equiparada ao crime de racismo e, portanto, imprescritível.
Como é enquadrada a apologia ao nazismo? Condutas de defesa do nazismo podem ser enquadradas como incitação ou indução ao preconceito conforme previsto no art. 20 da lei 7.716/89. Para o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a fala de Monark pode vir a ser tipificada dessa maneira.
“A defesa da criação de um partido político voltado à discriminação e extermínio de pessoas pode vir a caracterizar, em tese, a incitação a essa prática. No caso discutido, ainda poderia se aplicar a causa de aumento de pena do §2º, já que a declaração se deu por intermédio dos meios de comunicação”, disse o instituto.
Há um trecho da lei que cita especificamente o nazismo, com pena de reclusão de dois a cinco anos, além de multa. Ele tem aplicação restrita, contudo, a casos que envolvam a utilização da “cruz suástica ou gamada”.
O que diz a lei sobre homofobia e transfobia? Embora não haja na legislação brasileira a criminalização da homofobia e da transfobia, ela é possível pela decisão do STF, que equiparou ambas as condutas ao crime de racismo até que o Congresso Nacional aprove uma legislação sobre o tema.
O que dizem os tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte? Em 2021, o Congresso aprovou o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, incluindo o texto ao ordenamento jurídico brasileiro. Segundo a norma, a discriminação racial pode se basear em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica.
O artigo 4º da Convenção define racismo como “qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial”.
Diz ainda que tais condutas perturbam gravemente a paz e a segurança internacional e são condenadas pelos países signatários.
“É um tratado que já mostra que esse endosso a práticas racistas já cai numa prática de racismo que o nosso sistema proíbe”, diz o professor da FGV Direito-SP e coordenador do grupo Supremo em Pauta, Rubens Glezer.
Desde 1992, também faz parte do ordenamento interno o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que em seu artigo 20 diz que “será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência”. O Brasil ratificou ainda, em 1969, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial.
A fala em defesa da existência de partido nazista é crime? No caso da fala de Monark, especialistas entrevistados pela Folha divergiram quanto ao enquadramento criminal da declaração.
Isso porque parte deles entende que defender o direito de dizer algo é diferente de fazer apologia ao crime, e estaria dentro do direito à liberdade de expressão. Segundo a Constituição, é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.
Por outro lado, quem argumenta que tal fala pode ser enquadrada como crime explica que tal ato já pode ser considerado como uma incitação à discriminação e que, diferentemente de casos como a descriminalização das drogas, é preciso considerar a lesividade do discurso que está sendo defendido a uma coletividade.
“Não é que as ideias do nazismo sejam aceitáveis porque são ideias. Elas não são ideias: elas são um programa de ação e um programa de ação leva ao que já aconteceu”, diz a diretora da ONG Artigo 19, Denise Dora.
“A gente tem que avaliar aquilo que chamamos de fronteiras da liberdade de expressão em relação a qual é a possibilidade de aquela manifestação, que parece apenas uma fala, na verdade contém um incitamento e uma proposta de organização de uma ação que vai atingir ou indivíduos ou populações, grupos inteiros”.
Como o STF tem decidido sobre o tema? O caso Ellwanger é citado como emblemático na discussão sobre o tema. Em 2003, o STF condenou o proprietário da Editora Revisão, Siegfried Ellwanger a dois anos de reclusão por crime de incitação ao racismo por obras em que questionava a existência do Holocausto. O entendimento dos ministros foi de que “escrever, editar, divulgar e comerciar livros fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica constitui crime de racismo”.
Rossana Brum Leques, advogada criminalista e mestre em direito penal pela USP, diz que a corte tem seguido a noção de que o direito à liberdade de expressão não é absoluto e não pode ser usado para prejudicar minorias. Nos casos criminais, porém, ela reforça que a maioria dos julgamentos acaba tratando de crime contra a honra e não como racismo.
Denise Dora afirma que ainda é preciso muito trabalho de convencimento e construção de argumentos para que a Justiça se posicione de forma mais consistente.
“Esse conjunto de agressões sistêmicas, com as quais a gente convive na sociedade brasileira, de ataques agressivos, violentos, ofensivos às pessoas por conta da cor da sua pele, por conta de serem mulheres, isso é a antessala dos discursos de ódio organizados e das ações organizadas de extermínio. Tem uma cadeia e o Judiciário brasileiro não vê e não age em relação a isso”, diz.
A discussão sobre os limites da liberdade de expressão é diferente em outros países? O professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano diz que o tema gera grandes controvérsias nos EUA, principalmente em razão da atuação de supremacistas brancos.
“O supremacismo branco é uma postura evidentemente racista e o tema dos limites da liberdade de expressão é muito duvidoso, sempre gera conflitos na Suprema Corte dos Estados Unidos. A última tendência da corte é negar a validade das chamadas “fighting words”, ou seja, a expressão de ideias que performam violência, como também é o caso do nazismo. Ultimamente há uma tendência da Suprema Corte em restringir e estabelecer limites ao direito de opinião quando esse direito implica violência”, segundo o constitucionalista.
Apesar disso, Serrano avalia que nos EUA ainda há uma grande tolerância em relação aos discursos dos supremacistas brancos. “Isso em um momento de onda de extrema direita pode se transformar em um problema para a democracia. A questão não é ser extremista, senão teremos uma ditadura de centro, mas ter como pressuposto a prática de crimes de lesa humanidade, como o nazismo”, afirma.
O colunista da Folha e professor de direito da FGV-SP Oscar Vilhena Vieira diz que no sistema americano prevalece um princípio de que um discurso de ódio só configurará violação à lei se houver prova de que há perigo de que a fala incite diretamente ou produza uma ação ilegal iminente.
“Nos Estados Unidos discursos discriminatórios são permitidos desde que não haja um risco de que aquilo que esteja sendo proposto pelo discurso se transforme em uma ação iminente”, afirma o professor.
Já no direito brasileiro, a exemplo do direito europeu continental que o inspira, uma manifestação racista pode levar a punições independentemente de suas possíveis consequências práticas.
De acordo com Vieira, “a Constituição americana dá uma proteção mais ampla do que as Constituições brasileira e europeias, no tocante à liberdade de expressão. No Brasil há uma criminalização do discurso racista.”
“Há uma metáfora empregada por juristas de que os europeus entendem a liberdade de expressão como se fosse o meio ambiente, que não deve ser poluído por discursos de ódio. Já o modelo americano é o do livre mercado de ideias, ou seja, deixem que falem bobagens, alguém vai se contrapor a elas”, completa.
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