Pesquisa mostra racismo das polícias cariocas
Quase 20 anos depois, uma pesquisa reanalisou dados e trouxe informações inéditas sobre as atuais abordagens policiais na cidade do Rio de Janeiro. Elaborado inicialmente em 2003 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, o estudo Elemento Suspeito indica, segundo os pesquisadores, “que o racismo constitui o cerne da atividade policial e do sistema de justiça criminal – além de revelar a dimensão traumática dessas abordagens”. O boletim da pesquisa, batizado de Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro, será lançado nesta terça-feira, 15, e aponta que 63% das aproximações de agentes da segurança são feitas em relação a pessoas negras, sendo que elas representam 68% dos abordados a pé e 71% dos em transporte público.
Para 83% dos respondentes, há racismo na Polícia Militar do Rio de Janeiro, que recebeu a pior nota média entre todas as corporações das forças de segurança: 5,4. Entre os que tiveram sua casa revistada pela polícia, 79% eram negros, e 74% dos consultados que tiveram parentes ou amigos mortos por autoridades são pessoas negras. Ainda de acordo com o levantamento, 17% dos entrevistados já foram parados mais de dez vezes por agentes do estado.
O estudo indica ainda que a distribuição de idade, cor, gênero e local de moradia dos que foram parados mais de dez vezes pela polícia revela as características do elemento suspeito a partir do ponto de vista policial: 94% eram homens, 66% eram negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, enquanto 33% moravam em bairros de periferia e 58% ganhavam de zero até três salários mínimos.
Os dados indicam certo desânimo e falta de perspectivas de que esse cenário mude, segundo Pedro Paulo da Silva, pesquisador do Cesec e coordenador de pesquisa do Laboratório de Dados e Narrativas sobre Favelas e Periferias (LabJaca), sediado no Complexo do Jacarezinho (Zona Norte do Rio) – onde, há duas semanas, o estudante negro Yago Corrêa de Souza foi preso pela polícia após comprar pão.
“Passamos por diversos governos e diversas tentativas de reforma e melhoria na segurança pública, mas as abordagens da polícia estão ainda piores. A tecnologia de câmeras nos uniformes da PM pode ajudar, mas faria outra pergunta: o que mudou após Cláudia Silva ter sido arrastada por uma viatura da PM em 2003? Há um vídeo estarrecedor, e o cenário de violência não acabou. É preciso enxergar que o racismo não é um mero preconceito: racismo é a desumanização da pessoa negra”, pondera Silva.
Segundo o Cesec, a primeira parte da pesquisa veio a partir de um rastreamento com 3 500 pessoas em pontos de fluxo na cidade. Dentre o grupo, foram feitas 739 entrevistas detalhadas pelo Instituto Datafolha. Qualitativa, a segunda parte pôs foco em entrevistas com jovens moradores de favelas, entregadores, motoristas de aplicativos, mulheres e policiais. “Desta forma chegou-se ao perfil predominante de pessoas consideradas reiteradamente suspeitas pelos policiais e escolhidas para as abordagens”, dizem os pesquisadores.
Para Silva, a pesquisa mostra como a violência das forças de segurança – que perpassa não apenas a Polícia Militar, mas também a Polícia Civil do Rio – traz um imenso impacto na dimensão psíquica dos traumas, individuais e coletivos, das pessoas negras. “O universo de pensamento quando o tema vêm à tona gira em torno de medo, terror, violência”, diz ele.
Um dos relatos de jovens consultados no documento sintetiza essa duríssima percepção. “Não posso usar a roupa que eu gosto, camisa do Flamengo, bermuda e um boné. Não posso esquecer um documento, ainda que esteja perto de casa e nem posso praticar o meu esporte favorito que é a corrida saindo de onde moro, no Catumbi, até o Aterro do Flamengo, por exemplo”, desabafou. “A questão é também sobre a sua classe social e sua cor. É sobre onde você mora”, completou outra jovem negra moradora de uma favela.