Áudios da ditadura foram adulterados para esconder partes piores
O advogado Fernando Fernandes, que após 20 anos de uma batalha judicial com o Superior Tribunal Militar (STM) conseguiu ter acesso aos áudios de gravações de julgamentos de presos políticos da época da ditadura, revelou ao GLOBO que existem indícios de que o material entregue está incompleto.
Segundo o jurista, ainda não é possível afirmar com clareza o teor do que teria sido suprimido, mas ao aferir os números dos processos julgados pela Corte Militar com os áudios disponibilizados após a decisão judicial, em 2017, já foi possível identificar sessões que não constam no material. Apenas do ano de 1976, foram contabilizadas 63 sessões com gravações faltantes. A intenção de Fernandes é, ao finalizar o levantamento, entrar com um novo pedido de acesso aos áudios junto ao STM. Procurado, o órgão militar não se pronunciou.
— Nos arquivos que nos foram entregues, já encontramos indícios de elementos faltantes, partes de áudios suprimidos. Houve uma resistência manifesta durante 20 anos (por parte do STM para entregar as gravações), mas sequer temos a certeza de que o material entregue, nesse caso, seja a integralidade dele — afirma o advogado.
Entrevista: Áudios são ‘dolorosos’, diz ministra do Superior Tribunal Militar
Do compilado, que abrange os anos de 1975 a 1985 e contabiliza mais de dez mil horas de gravação, Fernando Fernandes optou por fazer um recorte em sua pesquisa até o ano de 1979, data da Lei da Anistia no Brasil, totalizando mais de 17 mil áudios. Seu projeto agora é publicizá-los através de um site, chamado Voz Humana, que será lançado ainda esse semestre.
Preso político
A luta de Fernandes para acessar o conteúdo das gravações começou em 1997, quando motivado pela história do pai, Fernando Tristão Fernandes, advogado e preso político da ditadura, iniciou uma pesquisa sobre as peças de defesa nos arquivos do prédio do STM, em Brasília. Já ciente da existência das gravações de julgamentos através de conversas com outros juristas, ele solicitou acesso ao material e se deparou com uma sala só para armazenar as fitas dos áudios.
— Eu sabia que não era possível pensar em acessar um material desse sem uma consequência e rapidamente fiz a cópia de sustentações orais dos advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Antônio Modesto da Silveira e do índice com o número dos processos, o nome do réu e o nome do advogado de defesa, e escondi atrás da privada do banheiro da Casa. Assim que um funcionário designado para acompanhar a pesquisa escutou as primeiras denúncias de tortura das gravações, o material visível foi apreendido e eu voltei correndo para o Rio, com a cópia de segurança — relembra.
A partir daí, começou uma disputa judicial que atravessou diversas instâncias, tendo como ponto inicial a impetração de um mandado de segurança no STM por parte de Fernandes, assim que teve o material da pesquisa apreendido. O pedido foi negado, e o advogado recorreu, então, ao STF, através de uma medida de urgência, que com uma liminar impediu o STM de apagar as gravações. O caso foi a julgamento no Supremo, em 1998, quando o então ministro Nelson Jobim pediu vista do processo, que permaneceu em seu gabinete até 2006. Ele colocou o pleito em julgamento em sua última sessão na Casa antes da aposentadoria e votou favoravelmente, com o STF concedendo o acesso aos arquivos.
— O STM descumpriu a ordem e nós entramos com uma nova ação no Supremo, que foi distribuída para a ministra Cármen Lúcia, em 2007. O caso ficou em seu gabinete até 2017, quando conseguimos novamente uma decisão favorável pela abertura dos arquivos — conta Fernandes.
Confira a entrevista com Fernando Fernandes
Como o senhor pretende usar o material?
O material é tão amplo, tão gigantesco, que vamos construir um site chamado Voz Humana onde ele estará integralmente disponível para todos os pesquisadores brasileiros, ainda nesse semestre. Será complementar ao site do Tortura Nunca Mais, que tem todos os processos físicos, com um mapa do Brasil em que o pesquisador poderá ver todos os processos de acordo com a região.
Qual foi a sua motivação?
O meu pai foi advogado de preso político e também foi preso. Meu irmão também foi perseguido no caso da bomba do RioCentro. Ele foi um dos médicos a operar o capitão e identificou o paciente, o que não podia. Venho de uma família que tem uma raiz de resistência.
O senhor sofreu ameaças ou se sentiu acuado?
Não, porque a nossa formação para exercer a advocacia, como dizia Sobral Pinto, não é para covardes. O único episódio aconteceu durante o julgamento do STM, em 1997, onde várias vezes ministros manifestaram que deveria haver um decreto de prisão contra mim, ali houve uma ameaça. Mas o tribunal não acatou essas manifestações.
Pensou em desistir em algum momento?
Não, porque não é uma luta exclusivamente sobre o acesso ao material. É uma luta sobre o Estado Democrático de Direito. Ela se inicia com a questão da perseguição dos presos políticos, mas ela se desdobra em uma atuação de vida.
Foram encontrados outros dados relevantes nos áudios, além da prática de tortura?
O material vai desde a perseguição de presos políticas, a confirmação de tortura, à confirmação de mistura de religiosidade ao Direito, usando as crenças para sustentar a legitimação do Tribunal na repressão. Também traz o julgamento de casos onde militares eram acusados de corrupção. O falso mito criado de que não havia corrupção em 1964 cai por terra.
Enxerga reflexo dos atos das Forças Militares do passado nos dias atuais?
Enquanto as Forças Armadas brasileiras, que são importantes para a nossa nação, não reconhecerem a existência de tortura e não se desculparem publicamente por isso, nós estaremos sempre sob o risco de novas intervenções.
As Forças Armadas continuam a atuar para dificultar o acesso ao material?
Nós ainda temos graves dúvidas, e isso são elementos da nossa pesquisa, de que o material entregue não é completo. Nós precisamos completar o quebra-cabeça para conseguir comprovar isso, mas nos arquivos entregues nós já encontramos indícios de elementos faltantes, partes de áudios suprimidos. Houve uma resistência manifesta durante vinte anos (por parte do STM para entregar as gravações), mas sequer temos a certeza de que o material entregue, nesse caso, seja a integralidade dele. Isso é grave. Além disso, ainda temos outros materiais a serem descobertos. As gravações anteriores a 1975 não foram descobertas até hoje e temos corpos ainda desaparecidos no país.
O senhor acredita que estamos perto de novas descobertas?
Estamos em um momento em que o vice-presidente da República (Hamilton Mourão) fala de maneira jocosa contra a investigação disso, de que não vão desenterrar corpos, ou que o filho do Bolsonaro (o deputado federal Eduardo Bolsonaro) ridiculariza a tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão. Isso é de fato o reviver da tortura e talvez seja o momento mais importante para esse material ser divulgado.
O Globo