Classe média empobreceu no governo Bolsonaro

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Foto: MARCOS PORTO/ESTADÃO CONTEÚDO

A classe média voltou aos holofotes no debate entre os pré-candidatos à Presidência nos últimos dias, mas a própria classificação de quais são as classes no Brasil não é consenso. A primeira questão é que há diferenças entre classes sociais – mais ligadas à sociologia e aos aspectos culturais – e classes econômicas, que consideram essencialmente critérios de renda, apontam especialistas.

Para além disso, mesmo a divisão por classes de renda tem mais de um parâmetro, já que não há medida oficial do país. Pesquisadores e consultorias constroem suas classificações, com faixas de renda diversas, a partir de dados de rendimento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e de outras fontes, como transferências sociais, aposentadorias, aluguel e investimentos.

Pelo critério monetário, a classe média é a classe C, que está na média da renda da população brasileira. Em geral, é uma parcela da população que depende quase exclusivamente da renda do trabalho, seja ele formal ou informal. É um grupo que vive com mais vulnerabilidade econômica, por estar mais próximo da base da pirâmide de renda.

Mesmo considerando diferentes divisões monetárias, analistas são unânimes em destacar o empobrecimento da classe C nos últimos anos. Um processo que começou na recessão dos anos 2015 e 2016, não foi contornado no pós-crise por causa da recuperação fraca da economia e acabou sendo reforçado com a pandemia.

Na classificação da Tendências Consultoria, por exemplo, a classe média tem renda mensal domiciliar entre R$ 2,9 mil e R$ 7,1 mil. Nas contas do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPS/FGV), a classe C tem renda no domicílio entre R$ 2.284 e R$ 9.847 por mês, muito distante de ser capaz de financiar um estilo de vida que o coordenador do Centro, o economista Marcelo Neri, chama de “classe média tradicional dos filmes americanos”. A imagem, explica, tem a ver com a referência cultural da classe média e não com parâmetros de renda.

Já pelos critérios do Instituto Locomotiva, a classe C está dividida em três subgrupos (C1, C2 e C3), com faixa de renda per capita que oscila entre R$ 579,70 e R$ 1.819,82. O intervalo grande de renda, seja qual for a classificação, aponta o quão diversa é essa classe C.

Estudo da Tendências mostra de forma clara o empobrecimento dessa classe média nos últimos anos. A renda média mensal dos domicílios da classe C, que ultrapassou a faixa dos R$ 4 mil até 2014, perdeu esse patamar na recessão de 2015/2016, recuperou rapidamente em 2017, mas oscila desde então abaixo dos R$ 4 mil. Os últimos dois anos foram de queda (2020 e 2021) e deve voltar a crescer em 2022, segundo projeção da consultoria, para R$ 3.613, mas ainda ficará bem abaixo dos R$ 3.939 de 2019 (considerando preços de novembro de 2021).

Em 2020, a classe C teve queda de 3,8% na renda domiciliar, seguida por retração ainda maior em 2021, de 6,3%, segundo projeção da Tendências. Enquanto isso, a classe D/E, que tem renda menor, mas foi beneficiada pelos programas de transferência de renda ampliados por conta da pandemia, teve aumento de 21,9% da renda domiciliar. Apesar da perda de 15,9% em 2021, ainda está maior, em média, ao que era em 2019, pelo cálculo da consultoria.

“Nos últimos anos, houve aumento da parcela dos domicílios na classe C e ao mesmo tempo temos uma classe média mais empobrecida”, diz Lucas Assis, economista da Tendências Consultoria e responsável pelo estudo. No período mais recente, lembra ele, tem se observado as médias salariais mínimas históricas, com muita dificuldade de negociação de salários e abertura de postos de trabalho de baixa qualidade e, por consequência, de menor rendimento.

A participação da classe C no total dos domicílios brasileiros aumentou de 31,6% em 2019 para 32,3% em 2020, pelas contas da Tendências, enquanto a classe B recuou de 13,7% para 13%, respectivamente. Já entre 2020 e 2021, quem recuou foi a classe A (3,5% para 2,8%, segundo a estimativa da consultoria), enquanto a classe B manteve a mesma parcela (13%) e a classe C continuou a avançar (32,3% para 33%).

“Dentro de cada classe, há uma grande heterogeneidade. A classe C comporta diferentes grupos, mas é uma classe média de um país em desenvolvimento, que ainda apresenta significativas vulnerabilidades econômicas. Ela depende unicamente de salários, tem forte presença da informalidade e de postos de trabalho de baixa qualificação”, explica Assis.

Mais do que apenas renda, destaca o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, a classe média – que ficou conhecida como nova classe média nos anos em que vinha crescendo fortemente, antes da recessão de 2015/2016 – perdeu acesso a serviços e produtos que tinha conseguido alcançar, como escola privada para os filhos, plano de saúde para a família e viagens de avião, por exemplo.

“A classe C, que tinha melhorado de vida, vem sofrendo muito nos últimos anos. Primeiro com a recessão e depois na pandemia. Com o desemprego e a perda da renda, mas principalmente por perder conquistas que já tinham tido. Perder dói muito mais do que deixar de ganhar”, diz Meirelles, acrescentando que a perda de renda também atinge a chamada antiga classe média. “As duas classes médias estão consumindo menos. Quase todos estão consumindo menos.”

A antiga classe média ou a tradicional classe média — identificada no caso da classificação de renda como a classe B — também ficou menor na pandemia. Pelos dados da Locomotiva, a parcela no total da população, que era 21,1% em 2019, caiu para 14,3% em 2021. Já a classe A viu sua fatia recuar de 7,6% para 4,6%, considerando a mesma base de comparação.

Esse vocabulário que trata da classe média como a antiga ou tradicional e a nova traz nele muito do contexto de classe social versus a classe de renda e também da referência cultural de uma classe média de países desenvolvidos, como Estados Unidos e os da União Europeia, diferente do que é a realidade brasileira e no mundo.

“No fundo, a referência cultural que se tem de classe média é a dos filmes americanos, com casa, dois carros e dois cachorros. Mas o que a gente conhece como classe média americana é rica no Brasil. Ainda há muita confusão. Uma coisa é a classe social e outra é a econômica, no sentido de poder de compra, de consumo. Como economista, falo de classe econômica”, argumenta Marcelo Neri.

O economista pondera que a classe C é uma das que mais se ressentem da atual situação de restrição fiscal do país. “Depois de um período de ascensão, graças ao crescimento da renda do trabalho e da redução da desigualdade, a classe C acumula muitas perdas. Quando volta para o setor público, em serviços que não usava mais, como escolas e hospitais, sente a diferença na qualidade”, diz.

Valor Econômico