Cozinheira negra vítima de racismo pede justiça
Foto: Reprodução
Em outubro do ano passado, a cozinheira Eliane Aparecida de Paula, 42 anos, viveu o episódio de racismo mais agressivo de sua vida. Ela aguardava um carro de aplicativo na rua Oscar Freire, em um bairro nobre de São Paulo, em frente ao prédio de classe alta onde trabalhava havia mais de seis anos. Foi quando uma moradora passou, a insultou de “negra esquisita” e, depois, a agrediu com socos e joelhadas.
As imagens vieram a público cinco meses depois, no dia 1º de abril, após a Justiça conceder o pedido da defesa para obter as gravações da câmera de segurança do edifício. O vídeo mostra Eliane tentando impedir a agressora, Patrícia Brito Debatin, de fugir sem consequências, já que a cozinheira avisou que o insulto racista era um crime. Em entrevista a Universa, Eliane conta que, naquele momento, não passou pela sua cabeça apenas dar um basta no racismo, mas queria também fazer com que a agressora entendesse o quanto aquelas palavras a machucavam.
“Eu tentei explicar que o que ela estava fazendo era um crime e que estava me fazendo mal. Ela tentou me convencer que não era racismo e tinha amigas negras. E dizia que eu só queria causar, queria o dinheiro dela.”
“Quando decidi falar com ela, eu não tinha esse sentimento de dizer ‘chega’, eu queria dizer que eu não poderia passar por aquilo. Perdi meu filho recentemente e só queria evitar mais aquela dor. Eu não tinha condições.”
Eliane perdeu um filho de 22 anos há menos de dois anos, no dia 29 de dezembro de 2020, em um acidente de trânsito. O jovem estava em uma moto quando um motorista, com sinais de embriaguez, atingiu o veículo do rapaz.
“Após a morte dele, tentei voltar a me reconstruir. Todos dias, eu acordo pelos meus outros dois filhos. Tenho um propósito de vida, todos os dias junto forças para estar de pé, junto muitas energias para fazer os pratos que faço com amor. Então, eu não tinha condições para lidar com mais aquilo.”
Naquela sexta-feira de 22 de outubro de 2021, Eliane deixava o trabalho para voltar para casa, no bairro do Ipiranga, zona sul da capital paulista. “Não tinha o costume de ficar naquele banco. Sentei ali para aguardar o carro e ela já me abordou. Em um primeiro momento, tentei ignorar e fingir que não escutei, mas ela continuou dizendo ‘que negra esquisita’ e perguntando o que eu estava fazendo ali e onde eu trabalhava”, relata.
Eliane afirma ter ficado indignada e impediu que a moradora acessasse o elevador do prédio — o que as imagens mostram.”Então, ela me empurra e eu digo que, agora, ela havia cometido dois crimes [injúria racial e agressão física] e que eu chamaria a polícia. A partir daí ela, puxa meu cabelo e começa a me agredir, com chutes e joelhadas.”
A agressora só parou de agredir Eliane quando foi impedida pelo zelador do edifício. “Quando ela vê que chegaram muitas pessoas, tentar contornar a situação. Fala que não fez nada e me pede desculpas. Mas naquele momento, eu já não conseguia mais ouvir a voz dela, era como se fossem facadas e eu pedi para ela sair dali”, afirma. A cozinheira registrou então o boletim de ocorrência e foi encaminhada ao exame de corpo delito.
Eliane conta que já havia encontrado Patrícia no elevador uma vez antes deste episódio, mas que não conhecia a mulher. “Naquela ocasião, ela me olhou feio, mas deixei ela passar.” ”
A gente nasce negro, sofre muitos racismos, mas a gente não sabe e nem percebe. Quando começamos a ter informação, percebemos que uma pessoa negra normalmente sempre sofre racismo. Mas eu nunca havia sofrido um nível de violência como o desta situação”, diz.
A cozinheira conta que, após o episódio de violência, se sentiu culpada. “Fiquei pensando onde falhei, se eu deveria mesmo ter sentado naquele banco para pedir o carro. Senti que tinha feito algo. Mas eu estava ali só existindo, essa é verdade.”
Depois do episódio, ela teve que lidar com o trauma. Hoje só entra nos prédios onde trabalha acompanhada pelos clientes e evita ficar sozinha nas dependências dos condomínios. “Sinto muita dificuldade. Eu ainda estava tentando me reconstruir de outro trauma.”
Dois dias depois do episódio, Eliane pediu as imagens da câmera de segurança do edifício, que avisou que elas só poderiam ser fornecidas a moradores ou mediante a um pedido judicial.
No dia 17 de novembro, o advogado Theodoro Balducci enviou uma notificação extrajudicial para o condomínio preservar as imagens. Ele explica ser comum manter as imagens por apenas 30 a 45 dias, por questão de espaço.
Com as gravações recebidas no dia 23 de março, o advogado entrou com uma representação criminal, na última quinta-feira (31), por lesão corporal, que pode gerar pena de três meses a um ano de detenção, e de injúria racial, com previsão de um a três anos de reclusão. Além disso, Balducci explica que existe possibilidade de buscar uma reparação civil por dano moral.
“A Eliane já tinha o boletim de ocorrência e o exame de corpo delito, mas decidimos esperar as imagens, que são muito impactantes e exorbitantes, para a partir delas fazer o pedido de representação. Com o que ela narrou já seria suficiente para iniciar o processo, mas evidentemente preferimos aguardar porque as imagens que bastam por si mesmas”, diz o advogado.
No dia 1º de abril, a Polícia Civil instaurou um inquérito para investigar as agressões. Eliane está otimista com o andamento do processo.
“Sou uma pessoa que acredita no Judiciário, no Ministério Publico, até o último momento. Mesmo quando passaram 20 minutos e a Polícia não havia chegado, eu continuei acreditando e, por isso, registrei o boletim e tomei essa decisão de mostrar publicamente [as imagens] porque a sociedade precisa entender que existe racismo”, diz a cozinheira.
“Espero que o Judiciário faça um trabalho bem feito para que a sociedade seja educada. Palavras não convencem, mas exemplos, sim. Que o judiciário venha dar exemplo, independentemente do posicionamento financeiro das pessoas envolvidas. Quero receber um tratamento igual e digno.”
Eliane afirma que ainda acredita no diálogo como forma de educação. “Ninguém nasce racista, as pessoas nascem em uma cultura racista e têm esse tipo de comportamento. Mas o bem é maioria. Acredito na transformação das pessoas”, finaliza.
Patrícia não foi localizada pela reportagem de Universa. Mas o espaço fica aberto para quando ela se manifestar