Fux indica auxiliar para temporada na OEA
Foto: Carlos Moura/SCO-STF e CNMP – Divulgação
O ministro Luiz Fux, presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), nomeou o secretário-geral Valter Shuenquener de Araújo “representante do Poder Judiciário brasileiro” junto à 0EA (Organização dos Estados Americanos). Ele é juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e vai residir em Washington, pelo período de dois anos.
Fux repete o ex-presidente do CNJ Ricardo Lewandowski.
Em setembro de 2016, em final de mandato, Lewandowski designou o juiz de direito Luís Geraldo Sant’Anna Lanfredi, do TJ-SP, “representante associado do Poder Judiciário brasileiro” junto à Secretaria- Geral da OEA, em Washington, também pelo período de dois anos.
Na época, Lanfredi era juiz auxiliar no CNJ. Hoje, Shuenquener e Lanfredi são juízes auxiliares de Fux.
“ARISTOCRACIA JUDICIAL”
O longo afastamento de magistrados do tribunal de origem se tornou comum na cúpula do Judiciário. Sempre houve resistências e críticas, principalmente de juízes de primeiro grau.
Há um pequeno grupo de juízes que há anos tem ocupado cargos em tribunais superiores, em Brasília, trocando posições a cada mudança de administração.
Na primeira instância, esse grupo é chamado de “aristocracia judicial”. São definidos como “juízes com alergia a processos”. Esse trânsito facilita indicações para promoções, furando a fila de magistrados que não encontram as mesmas facilidades para a evolução na carreira.
A atuação de Shuenquener como juiz auxiliar no Supremo Tribunal Federal começou em 2011. Na sequência, exerceu funções administrativas em outros órgãos do Judiciário e do Ministério Público.
Em novembro de 2015, sob o comando de Lewandowski, o CNJ regulamentou a convocação de magistrados para atuarem como juízes auxiliares. Uma resolução estabeleceu o afastamento de suas funções nos tribunais de origem pelo prazo máximo de dois anos, prorrogável uma única vez por igual período.
Ao justificar essa quarentena, Lewandowski disse que longos períodos de afastamento “representam um alto custo aos tribunais cedentes e um ônus adicional para os colegas que remanescem na jurisdição”.
Os dispositivos para barrar essas distorções foram eliminados quando o ministro Dias Toffoli assumiu a presidência do CNJ.
Lanfredi e Shuenquener seguem a trilha aberta anos antes por Carlos Vieira Von Adamek, desembargador do TJ-SP.
Adamek está em Brasília desde maio de 2010, quando começou a trabalhar no gabinete de Toffoli no STF como juiz instrutor. Foi juiz-auxiliar durante o julgamento do mensalão. Adamek exerceu várias funções administrativas em vários órgãos [veja detalhes adiante].
Hoje, é juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça na gestão de Fux como presidente do CNJ.
ESTRATÉGIAS HEMISFÉRICAS
Os procedimentos para escolha desses colaboradores aparentemente violam as regras da diplomacia. Segundo avaliação de um ministro em Brasília, a OEA não pode fazer pedido “com nome e sobrenome”. Para recrutar colaboradores, tem que fazer um chamamento aberto, pedir para os Estados-Membros indicarem candidatos.
Em ofício ao presidente do CNJ, o secretário de Assuntos Jurídicos da OEA, Jean-Michel Arrighi, registra “a notável expertise, a excelente formação e a capacidade de elaboração de projetos de grande relevância” de Shuenquener.
Arrighi afirma que “o douto juiz poderá colaborar com a elaboração e implementação de uma estratégia hemisférica em matéria jurídica, com ênfase nas temáticas em que o Brasil se destaca pelas soluções adotadas”.
A Secretaria de Comunicação Social do CNJ informa que o secretário-geral foi convidado “em razão da experiência na coordenação de projetos na área de direitos humanos e digitalização dos serviços da Justiça”.
Ainda segundo o CNJ, Shuenquener “trabalhará com desenvolvimento do Direito Internacional, codificação do direito interamericano, divulgação dos instrumentos jurídicos da OEA e cooperação jurídica interamericana”.
A colaboração do secretário-geral do CNJ é sem ônus para a OEA. Ou seja, Shuenquener continuará recebendo os vencimentos do tribunal ao qual está vinculado. Em Washington, onde deverá residir por exigência da OEA, ele “não receberá nenhum auxílio, diária ou ajuda de custo e continuará com seu vencimento de juiz, em reais, como todos os juízes convocados pelo CNJ”, informa a assessoria do Conselho.
TRATAMENTO INDEVIDO
A presença de Lanfredi na OEA em Washington despertava curiosidade de colegas do TJ-SP, que não sabiam exatamente o que o magistrado fazia naquela organização. Em compromissos no Brasil, ele era tratado indevidamente como “juiz da OEA”. Foi identificado assim quando visitou a unidade de progressão da Penitenciária Central do Paraná (PCE-UP), em 2017.
A OEA não tem juízes, só a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que faz parte do “sistema” da OEA, com sede em San José na Costa Rica.
As designações dos dois juízes foram feitas a partir de convites “nominais e não direcionados genericamente ao CNJ”. Por isso, segundo informa o CNJ, “não há nenhum tipo de processo seletivo interno para a vaga”.
Os dois magistrados possuem currículos extensos, experiência em diferentes áreas, mas as tratativas sugerem uma informalidade que não é usual.
Aparentemente, houve uma inversão das práticas. Na documentação disponível, não foram fornecidos os Termos de Referência (ToR) para o cargo. Ou seja, as informações que atestam a compatibilidade com as funções que serão exercidas.
OFÍCIOS NA GAVETA
O sistema funcionou assim: a OEA manifestou interesse na colaboração daquele determinado magistrado ao governo brasileiro, que, por sua vez, repassou o convite ao CNJ; o órgão de controle do Judiciário, então, designou o juiz e informou ao tribunal de origem.
Os convites a Shuenquener ficaram um ano na gaveta de Fux. Foram assinados em março de 2021 pelo secretário da OEA Jean-Michel Arrighi e pelo então ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo.
Fux só formalizou a nomeação em fevereiro último. A antecipação da OEA sugere ter havido um ajuste diplomático prévio entre as partes. No ofício, Arrighi prevê a colaboração do juiz, “por meio de um acordo de empréstimo (‘acuerdo de prestamo’) a partir de 2022, em data que seja a mais conveniente para o CNJ”.
Em maio de 2021, Arrighi e Shuenquener encerraram o “I Colóquio Jurídico Brasil-OEA: Boas Práticas do Direito Brasileiro”.
O ministro Ernesto Araújo afirmou no ofício a Fux que “a cessão de funcionários públicos brasileiros no regime de ‘secondment’, sem ônus para a OEA, pode constituir meio oportuno para fortalecer a presença e a influência do Brasil naquela organização de importância central para o hemisfério e para os interesses de nosso país”.
No caso de Lanfredi, o Ministério da Justiça enviou ao CNJ manifestação favorável. No dia 2 de agosto de 2016, ele foi nomeado por Lewandowski “representante associado”, a partir de 9 de setembro de 2016, com base em “Memorando de Entendimento” firmado entre o CNJ e a OEA, que especificava a proposta de colaboração.
Em 21 de setembro de 2016, em votação unânime, os membros do Órgão Especial do TJ-SP apenas “tomaram conhecimento” do ofício em que Lewandowski comunicava a nomeação.
Em Washington, o juiz paulista atuou na Secretaria de Segurança Multidimensional (SSM) da OEA. A missão dessa secretaria é coordenar a cooperação entre os Estados membros da OEA para prevenir e enfrentar as ameaças, “riscos e outros desafios à segurança dos Estados do Hemisfério”.
Lanfredi foi coordenador do projeto que resultou, em 2016, na publicação do relatório “Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – 2014”, com sentenças proferidas naquela corte. Ele foi juiz da Vara das Execuções Penais de São Paulo (capital). Em 2014, foi nomeado coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), órgão do CNJ.
Como integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) do Ministério da Justiça, Lanfredi foi o relator da comissão que elaborou a minuta do Decreto nº 8.172, que prevê as hipóteses de indulto com a liberdade (perdão da sanção condenatória) ou comutação da pena por outra menos gravosa (conversão de pena restritiva de liberdade em pena restritiva de direitos).
LONGE DOS TRIBUNAIS
Quando o ministro Dias Toffoli presidiu o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o desembargador Carlos Vieira Von Adamek foi o secretário-geral da presidência.
No CNJ, Adamek foi juiz auxiliar do corregedor nacional João Otávio de Noronha, que não cumpriu o prazo regimental de 15 dias para apresentar ao colegiado os relatórios de inspeções nos tribunais. As inspeções eram coordenadas por Adamek.
Quando Toffoli presidiu o CNJ, Adamek foi secretário-geral do conselho.
No primeiro dia como presidente do CNJ, Toffoli alterou o regimento interno beneficiando Adamek, pois eliminou a quarentena que vedava a longa permanência de magistrados distantes do tribunal de origem.
Considerado workaholic, Adamek chegou a trabalhar simultaneamente no CNJ, no gabinete do ministro Luis Felipe Salomão, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), e –à distância– no tribunal paulista, do qual recebia auxílio-moradia.
Shuenquener também exerceu várias funções em órgãos de cúpula do Judiciário e do Ministério Público.
Foi juiz auxiliar e juiz instrutor no Supremo Tribunal Federal, de 2011 a 2014. Em 2015, foi juiz auxiliar no TSE. Foi juiz instrutor e juiz auxiliar no gabinete de Fux no STF (2015-2020).
O atual secretário-geral do CNJ é doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O ministro Luís Roberto Barroso foi seu orientador. Fux é doutor em Direito Processual Civil pela mesma universidade.
DECISÕES AUTORITÁRIAS
Shuenquener foi conselheiro do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), por indicação do STF, (2015-2020). Em março de 2015, ele disputou uma vaga no CNMP em processo seletivo para o qual se inscreveram 102 magistrados (também concorriam a duas vagas no CNJ).
No CNMP, atuou nas gestões em que o órgão foi presidido por Raquel Dodge e Augusto Aras.
O juiz federal aderiu ao autoritarismo de Aras. O atual secretário-geral do CNJ extinguiu Procedimento de Controle Administrativo instaurado para impugnar duas portarias de Aras.
No início de sua gestão, o PGR ignorou normas internas, alterou o estatuto do órgão e interrompeu os mandatos em exercício de 16 conselheiros e coordenadores da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU).
A interferência de Aras foi considerada uma tentativa de aparelhamento da escola que cuida da profissionalização de procuradores e servidores do Ministério Público da União. Ainda candidato à PGR, Aras havia afirmado que existia uma “linha de doutrinação”, um alinhamento à esquerda.
Shuenquener entendeu que não é atribuição constitucional do conselho controlar os atos praticados pelo PGR. Considerou não haver irregularidade na alteração estatutária e, tampouco, direito para a manutenção dos mandatos que os requerentes ostentavam.
O conselheiro determinou o envio de cópia de sua decisão ao ministro Gilmar Mendes, que viria a indeferir pedido para suspender as duas portarias de Augusto Aras.
PUBLICAÇÃO ADULATÓRIA
Quando Aras ainda aguardava a confirmação de sua recondução à PGR, foi lançada a obra “Estado, Direito e Democracia – Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Augusto Aras”. O livro, de caráter bajulatório, é uma coletânea organizada por Toffoli e dois membros do CNMP, a título de reunir em livro reflexões sobre “os assuntos mais caros ao professor Augusto Aras”.
O atual secretário-geral do CNJ incluiu no livro texto sobre o estímulo à colegialidade e participação popular nos órgãos de controle: “Empoderamento maior das autoridades com poder sancionatório para a adoção de sistemas punitivos do modo independente”.
Em 2018, Shuenquener apresentou a Raquel Dodge proposta de resolução para disciplinar o exercício da atividade de síndico de edifício em condomínio pelos membros do Ministério Público. Sugeriu também compatibilizar o exercício do magistério com a atividade de instrutoria pelo sistema de coaching, ou seja, “trabalhar o desenvolvimento pessoal, acadêmico e humano, na busca por seus objetivos e metas, despertando todas as suas capacidades”.
OUTRO LADO
A Secretaria de Comunicação Social do CNJ enviou ao Blog os seguintes esclarecimentos:
Em resposta a sua solicitação, o Conselho Nacional de Justiça informa que o Secretário de Assuntos Jurídicos da OEA convidou nominalmente – por intermédio do Itamaraty – o juiz federal Valter Shuenquener, atualmente Secretário-Geral do CNJ, para a função em razão da experiência na coordenação de projetos na área de direitos humanos e digitalização dos serviços da Justiça.
Em Washington, onde deverá residir por exigência da atuação na OEA, trabalhará com desenvolvimento do Direito Internacional, codificação do direito interamericano, divulgação dos instrumentos jurídicos da OEA e cooperação jurídica interamericana.
Não haverá trabalhos jurisdicionais, apenas administrativos, assim como no CNJ.
Ao residir nos Estados Unidos, o magistrado não receberá nenhum auxílio, diária ou ajuda de custo e continuará com seu vencimento de juiz, em reais, como todos os juízes convocados pelo CNJ.
Entre 2016 e 2018, outro juiz, experiente em audiências de custódia, já havia sido convidado pela OEA nos mesmos moldes e cedido pelo CNJ.
Como os convites são nominais e não direcionados genericamente ao CNJ, não há nenhum tipo de processo seletivo interno para a vaga.
No dia 31 de março, o Blog enviou a seguinte consulta à OEA, com pedido de esclarecimentos semelhante ao formulado ao CNJ:
À
Organização dos Estados Americanos – OEA
A/C Departamento de Imprensa e Comunicação
Prezados Senhores,
Meu nome é Frederico Vasconcelos, jornalista brasileiro, editor do blog Interesse Público, hospedado no site do jornal Folha de S.Paulo, em São Paulo. O site trata de assuntos de interesse dos operadores de direito.
Gostaria de obter informações sobre a iniciativa da Secretaria de Assuntos Jurídicos da OEA, que solicitou ao presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministro Luiz Fux, a indicação do Juiz Federal Valter Shuenquener de Araújo, secretário-geral do CNJ, para atuar como representante do Poder Judiciário brasileiro junto à OEA em Washington D.C. por um período de dois anos.
1. Tenho interesse em obter uma descrição objetiva das atividades que serão exercidas pelo magistrado.
2. O juiz será remunerado pela OEA durante o período? Haverá ajuda de custo para as despesas? Há exigência de o juiz residir em Washington?
Consulto se o magistrado exercerá atividades semelhantes às do juiz Luís Geraldo Sant´Ana Lanfredi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, indicado anteriormente pelo ministro Ricardo Lewandowski, do STF, para representar o Judiciário brasileiro junto à OEA em Washington.
Agradeço antecipadamente a atenção.
Frederico Vasconcelos