Bondade eleitoral de Bolsonaro é ineficiente
Foto: Nelson Almeida – 21.dez.2021/AFP
Além do caráter eleitoral da medida, a ampliação do valor mínimo do Auxílio Brasil para R$ 600 é alvo de críticas de especialistas em políticas sociais, para quem o governo dobra a aposta em um desenho considerado ineficiente e desigual.
A fixação do valor mínimo por família ocorre independentemente do número de integrantes ou do grau de pobreza, o que contribui para criar distorções. Famílias com maior número de crianças, por exemplo, acabam recebendo um valor por pessoa menor do que é pago a beneficiários sem filhos.
Além disso, a fila de espera pelo programa será zerada, mas apenas para famílias que estiverem habilitadas na data de implementação das medidas. Dali para a frente, nada impedirá a formação de novas filas.
A elevação temporária dos repasses do programa Auxílio Brasil é uma das medidas incluídas na PEC (proposta de emenda à Constituição) aprovada pelo Senado na quinta-feira (30).
O texto dá carta branca ao presidente Jair Bolsonaro (PL) para furar o teto de gastos, ignorar as restrições da Lei Eleitoral e usar R$ 41,25 bilhões para turbinar programas sociais a três meses das eleições. O presidente busca a reeleição, mas está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.
O valor mínimo de R$ 600 remete ao primeiro desenho do auxílio emergencial, criado em 2020 para socorrer famílias vulneráveis em meio à crise provocada pela pandemia de Covid-19. O pagamento da ajuda proporcionou um dos melhores momentos da popularidade de Bolsonaro.
Como política pública, porém, a fixação de um piso por família contribui para ampliar desigualdades e corroer a solidez do Cadastro Único, base de dados criada em 2001 e que virou referência para identificar quem são e onde estão os brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza.
A oferta de um valor mínimo por família incentivou a divisão dos cadastros na expectativa de receber o benefício em dobro. Uma “estratégia de sobrevivência” diante da inflação e do aumento da pobreza e da fome, afirma a vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Tatiana Roque.
“A literatura mostra que pessoas em situação de pobreza têm estratégias de sobrevivência baseadas na experiência social. As novas famílias do Auxílio Brasil estão se dividindo para ter direito duas vezes ao benefício”, diz.
Entre novembro de 2021 e abril de 2022, o número de famílias de um só integrante recebendo o Auxílio Brasil saltou de 2,2 milhões para 3,7 milhões, um crescimento de 66,3% em poucos meses. Já o registro de famílias com seis integrantes ou mais vem caindo ao longo do tempo.
O economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da FGV (Fundação Getulio Vargas), afirma que o governo está “dobrando a aposta” em uma política que não está bem desenhada, justamente por tratar de forma igual cidadãos com diferentes graus de pobreza. “O valor de R$ 600 é bom de divulgação, mas não de desenho.”
Especialistas que atuaram na gestão do CadÚnico em governos passados alertaram, em artigo publicado na Folha, para a deturpação da base de dados. A socióloga Leticia Bartholo, que já foi secretária nacional adjunta de Renda da Cidadania, afirma que a reversão do estrago será um imenso desafio para o próximo governo.
“O trabalho que se vai ter é um trabalho que foi feito em 2004”, afirma, em referência ao processo de unificação de cadastros e atualização de informações sobre as famílias beneficiárias de programas de governo. “É um retrocesso de mais de 15 anos.”
Segundo Bartholo, a tendência de desmembramento de famílias é reforçada com o adicional de R$ 200 até o fim do ano, uma vez que a mensagem de um mínimo por família, independentemente do número de integrantes, se mantém.
Ela afirma que a próxima gestão deverá ter como prioridade a retomada do pagamento de um valor mínimo por pessoa, como era feito no Bolsa Família, marca social das gestões petistas. “Pode calibrar valores mais altos para a primeira infância, mas a partir de um desenho que gere mais equidade”, diz.
A revisão será ainda mais necessária diante da expectativa de que a elevação do gasto social se mantenha. Além do orçamento de R$ 89 bilhões para o Auxílio Brasil, o programa terá, com a PEC, R$ 26 bilhões extras para cinco meses de benefícios ampliados.
Embora o adicional seja temporário, técnicos do governo admitem que será difícil, para qualquer que seja o presidente a partir de 2023, reduzir o montante total do programa. Em termos anuais, a parcela extra significa uma despesa de mais R$ 62 bilhões.
“A tendência é que o orçamento [do programa] não seja cortado. Teria um programa de R$ 150 bilhões, ou 1,5% do PIB [Produto Interno Bruto]. É muito adequado ter uma proteção social mais abrangente, mas a revisão do desenho se mantém necessária”, afirma Bartholo.
Outro problema da proposta, segundo os especialistas, é que ela zera apenas uma das filas de espera pelo Auxílio Brasil: a que existir na data de promulgação da emenda constitucional. Famílias que se cadastrarem ou forem habilitadas a partir do dia seguinte já não terão qualquer garantia de inclusão no programa.
“A fila é o reconhecimento de um direito que as pessoas têm e que não é implementado”, afirma Neri.
Bartholo também critica esse ponto. “A preocupação não é genuinamente social. Se fosse, o governo transformaria o programa em um direito permanente [o que extinguiria as filas].”
Embora os números oficiais do Ministério da Cidadania apontem a existência de 764,5 mil famílias na fila do Auxílio Brasil em maio, a Rede Brasileira de Renda Básica estima que esse número possa chegar a mais de 2,5 milhões por causa da “fila da fila”, isto é, brasileiros que têm direito ao benefício, mas ainda aguardam atendimento no Cras (Centro de Referência da Assistência Social) para atualizar o cadastro.
“Há um desmonte do Cras. Antigamente, tinha busca ativa, isto é, buscar as pessoas que se encaixam nas condições do auxílio e que muitas vezes não têm condições sequer de ir até o centro”, afirma Tatiana Roque.
Neri chama a atenção para o fato de que, mesmo com recorde de recursos para programas sociais, as famílias seguem vivendo no que ele chama de “montanha-russa da pobreza”. “Não estamos usando como bússola o conceito de pobreza. Estamos gastando duas vezes mais, mas com eficiência menor”, diz.
A taxa de pobreza (que considera pessoas que vivem com até R$ 210 por mês) caiu ao mínimo de 3,9% da população em setembro de 2020, mas triplicou a 13,2% em março de 2021, durante a interrupção do pagamento do auxílio emergencial. Em setembro de 2021, ainda estava em 10,4%, segundo estudo de Neri com o pesquisador Marcos Hecksher.
A fatia dos 10% mais pobres da população são os que mais convivem com a incerteza sobre sua renda. A média mensal por pessoa chegou a R$ 52 em abril de 2020, subiu a R$ 215 em agosto do mesmo ano, caiu a R$ 55 no início de 2021 e, no fim do ano passado, estava oscilando perto dos R$ 100. Em outras faixas da população, a instabilidade é bem menor.
O pacote eleitoral de Bolsonaro tende a reforçar essa incerteza, uma vez que o adicional de R$ 200 no Auxílio Brasil será temporário, e as famílias não sabem ainda quanto receberão a partir de 1º de janeiro de 2023.