Em entrevista, esposa de Marcelo Arruda relata sua dor

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Foto: Reprodução

Pamela Silva, 38 anos, ainda fala de Marcelo Arruda no presente, como se ele estivesse presente na casa da família em Foz do Iguaçu (PR). Passadas três semanas desde a morte do tesoureiro petista, a investigadora relatou, em entrevista ao Correio, como está enfrentando a ausência do homem com quem manteve relacionamento por dez anos.

A conversa, por telefone, durou três horas. Durante quase toda a entrevista, amamentava o pequeno Pedro, de pouco mais de 50 dias. O bebê não se rendia ao sono. Insistia no leite materno. Parecia não querer deixar a mãe sozinha durante a conversa.

Foram necessários quatro dias para Pamela concordar em conversar. Nos primeiros contatos, ela respondia de forma cautelosa. As respostas vinham esparsas, tímidas. Com o tempo, Pamela ficou mais forte para dar o seu relato. E falou praticamente durante uma tarde. Muitas vezes com a voz embargada, contou como era a vida que dividia com Marcelo Arruda. Detalhou a história pessoal dele. Descreveu a trajetória como guarda civil, dirigente petista, biólogo, pai de quatro filhos e seu companheiro.

Com várias pausas, seja quando a emoção lhe tirava a fala, seja quando Pedro precisava mamar, Pamela contou sobre a família que formou com Marcelo, os dois filhos do casal e a rotina que tinham em casa. Reconstruiu o relacionamento que viveram, e que considera “não usual”, compondo assim um retrato bastante vívido do homem que foi assassinado em 9 de julho, na comemoração de seus 50 anos.

Marcelo foi um dos sete filhos de Dona Anita e seu Genésio. Ela trabalhava como doméstica, ele ganhava a vida como ajudante de pedreiro. Anita e Genésio, com filhos e os pais idosos dele, viviam em um pequeno barraco de uma favela de Foz do Iguaçu. Toda a família participava do esforço pela sobrevivência. Marcelo, com apenas 5 anos, começou a trabalhar como engraxate.

Tão logo conseguiu concluir o ensino fundamental, aos 18 anos, serviu no Exército. Depois de algum tempo trabalhando em hotéis de Foz, Marcelo foi aprovado no concurso para a Guarda Civil. Dedicou-se a esse trabalho por 26 anos.

Foi como guarda que cursou e concluiu o ensino médio e, posteriormente, diplomou-se em biologia. Nessa época, Marcelo casou-se pela primeira vez. Teve os filhos Leonardo e Heitor, atualmente com 26 e 16 anos, respectivamente.

Na faculdade de biologia, Marcelo conheceu Pamela. Ficaram amigos. Anos mais tarde, começaram um relacionamento. Em 2016, o casal teve Helena. E em janeiro de 2022, decidiram morar juntos. Pedro nasceu em junho.

Pamela descreve Marcelo como um homem sempre pronto a ajudar, não só a sua família, mas também a comunidade. “Ele queria mudar as coisas. Foi candidato a vereador; na última, a vice-prefeito. Na questão ambiental ele tinha muitos projetos”, relembra a viúva.

Após três horas de conversa, Pamela pede para encerrar a entrevista. Antes, ponderou que, se Marcelo não estivesse armado e não soubesse manejar a arma, a tragédia poderia ter causado muito mais vítimas. Jorge Guaranho, autor dos disparos que mataram o petista, é acusado de homicídio duplamente qualificado. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Pamela Silva.

Há quanto tempo Marcelo trabalhava como guarda municipal?
Há 28 anos. Ele comentava que faltavam uns oito anos para se aposentar. Estava fazendo planos já… Queria achar um espaço, um sítio, para ficar em paz. Ele gosta de lidar com plantas, com animais, ele queria um espaço para lidar com isso.

E onde vocês se conheceram?
No curso de biologia, na faculdade particular, mas eu segui tentando passar na universidade pública. Nós éramos amigos, mas quando eu consegui passar em uma universidade pública eu fui para lá. Nós dois nos formamos em biologia. Ele não exerceu biologia profissionalmente, só para os amigos. Como ele dizia o biólogo é um hippie profissional. Eu acabei na polícia.

Você é uma investigadora e bióloga?
Quando entrei na Polícia, imaginava trabalhar na delegacia ambiental. Mas acabei trabalhando na delegacia de investigação de crimes de corrupção aqui em Foz. Acabei virando uma investigadora de papéis.

E os seus pais?
Eles estão aqui comigo. Sempre fomos pobres, mas na infância, eu tive uma condição muito melhor que o Marcelo. Eles estão aqui comigo, me ajudando. Ficaram muito chocados, mas só o que me disseram é que a gente não merecia isso. A gente estava começando uma vida nova. Nós começamos a namorar há pouco menos de 10 anos, mas nós, mesmo com a Helena, de 6 anos, não morávamos juntos. Decidimos morar juntos no início deste ano, quando eu estava para ter o Pedro. Estava tudo dando certo. Estava tudo perfeito, tranquilo, a gente estava sem grana, mas a gente estava feliz.

Só agora tinham decidido morar juntos?
Sim, o Marcelo teve um primeiro casamento, dois filhos. Ele queria primeiro deixar os filhos assistidos. Ele agora tinha resolvido a vida dele. Estávamos aqui aproveitando. Nossa história não foi usual, a gente se conheceu há quase 20 anos, depois a gente virou amigo, depois a gente acabou saindo junto, isso há menos de 10 anos. Mesmo depois da Helena, a gente só namorou, até o início deste ano… Ele era bem insistente mesmo… Mas a teimosia dele não foi só comigo, foi com a vida dele também, porque ele nunca se conformou com a realidade que teve, ele sempre lutou e teimou em mudar aquela realidade. Mas não só a dele, da família. Ele sempre foi muito família.

E como foi, para dois biólogos, trabalhar com a segurança pública?
Talvez o Marcelo estivesse mais acostumado. Quando ele entrou na biologia, ele já trabalhava como guarda civil. Eu fui entrar na polícia depois. Para mim foi difícil, no início, lidar com toda a parte ruim. A gente não acaba naturalizando a violência, mas acaba entendendo ela. O Marcelo foi uma pessoa que me incentivou muito a entrar na polícia.

Ele gostava de ser guarda?
Ele gostava desse contato com a rua, de estar na rua, ele conhecia muita gente. Eu fiquei impressionada com a quantidade de gente que foi no velório do Marcelo, gente que eu nunca vi. Teve muita história que ele não me contou, de gente que ele passou, que ajudou, que ele viveu…

Teve alguma história que descobriu dele nesse momento?
Teve uma história que o Leo (filho mais velho de Marcelo) me contou, que ele foi abordado no velório por uma senhora, e eu fiquei impressionada com isso. O Marcelo era um cara que gostava de cozinhar, e um dia num patrulhamento em um bairro aqui de Foz ele foi abordado por uma mulher que estava com cinco filhos em casa e sem nada para comer. O Marcelo foi lá, conversou com ela e saiu. Depois voltou com uma cesta básica para ela. Mas ele não apenas entregou a cesta básica, ele foi lá e fez o almoço para ela e para os filhos dela. Ela falou que nunca iria esquecer o Marcelo e quando soube da notícia ela fez de tudo para ir ao velório e fazer a última homenagem para ele.

E o que deixava o Marcelo irritado?
O Marcelo ficava bravo… Deixa eu pensar… Aqui em casa ele sempre falava que não aceitava a desigualdade. Sempre nesse teor. Agora você me fez uma pergunta que me pôs a reflexão. Ele era uma pessoa que dificilmente ficava nervosa. Era só com questões sociais mesmo.

Marcelo era um sonhador?
Ele era. Tinha muitos projetos, e a política permitiu que ele desenvolvesse isso. Depois que ele entrou para o PT aqui de Foz, desenvolveu esse lado de sonhar. Ele sempre dizia pra mim: ‘Eu sempre tinha certeza do que eu quis, e tudo que eu quis eu consegui. Para algumas pessoas é fácil, para outras é mais difícil, às vezes tem que caminhar um pouco mais’. Esse foi o caso dele, ele sempre teve que caminhar um pouco mais para conseguir o que ele quis. Mas nunca foi ambicioso. Mas ele queria mudar as coisas, ele foi candidato a vereador; na última, a vice-prefeito. Na questão ambiental ele tinha muitos projetos.

E depois das eleições 2020 veio o Pedro…
Veio o Pedro e veio a coragem para mudar tudo, pra gente ficar juntos. Ele comentava com os amigos que ele estava mais leve, mais feliz. Ele era insistente como eu falei… Ele me ensinou a gostar dele, insistiu, mas ele gostou de mim de graça. E ele chegou na faculdade e disse que gostou de mim. Eu pensei que ele era louco, sei lá (nesse momento, Pamela ri).

E com o Pedro?
Com o Pedro nós decidimos morar juntos, e ele até estava se cuidando esses últimos meses, ele estava fazendo dieta, fazendo exercício, ele estava preocupado com o Pedro, ele dizia que precisava aguentar mais uns vinte anos, para não ser um pai velho chato, incomodando, ele estava determinado em fazer essa mudança física. Ele estava se cuidando, né. Eu me lembro que no dia do aniversário a gente acordou cedo, e ele brincou comigo dizendo que, agora, eu já estava dormindo com um tiozinho de 50 anos. A gente riu.

E a família dele?
Eles se ajudam muito entre eles. Teve esse irmão dele que foi até Brasília, mas por mais que eles tivessem divergências políticas, eles sempre se ajudavam. Eles dialogavam sobre política e futebol. Como a família dele é do Rio Grande do Sul, a família toda é Internacional e Grêmio. Ele era Colorado.

E o aniversário?
Olha, começou a se aproximar a data do aniversário dele, mas ele estava sem vontade de fazer, pois a gente estava sem grana. Eu disse que eram 50 anos: vamos passar um cartão aí. O cardápio, que foi entrevero, foi ele que preparou para os convidados. Como ele dizia, não era um picadinho, e sim um blend de carnes. Aí eu falei para ele: ‘Marcelo, vamos fazer uma decoração, o que você acha?’, então ele disse ‘eu quero do PT’. Aí fui conversar com o pessoal que faz decoração, mas isso não é comum, ninguém tinha decoração do PT, o que tinham era com as cores do PT. Fechamos uma decoração vermelho e branco. A única coisa que a gente mandou fazer foi aquela decoração do bolo, em papel de arroz. Enfim, tudo estava encaminhando para dar certo. Eram umas 30 pessoas, e a gente estava ali “de boas”. Ele juntou os quatro filhos em volta dele, cantou parabéns, estava feliz, (embarga a voz)… estava como ele planejou.

E depois?
A gente só se olhava e se entendia, e a gente já estava arrumando as coisas para ir embora, e de repente chegou esse carro. A gente pensou que era mais gente chegando atrasada, ele foi para receber o convidado, e eu fui atrás dele. Mas quando o Marcelo chegou, o carro manobrou e cara gritou ‘Mito!’. Marcelo disse que a festa era particular, que era para ele ir embora. Naquele momento eu me direcionei para a frente do cara, eu fiquei entre o Marcelo o cara, eu disse ‘cara, eu sou polícia, isso aqui é uma festa de família, baixa essa arma’. Nessa hora abriu a porta de trás do carro e saiu uma mulher gritando também ‘Para! Para!’. Ele pegou e foi embora, a gente não entendeu nada, que loucura…

Onde estavam as crianças nesse momento?
Na hora que ele chegou, a Helena eu já tinha levado na casa do meu pai. Os meninos estavam na sala de jogos do clube. Após o primeiro fato, o Leonardo pegou o Heitor e levou para casa. Todo mundo ficou chocado com aquela brutalidade. Mas eu não acreditava que ele iria voltar, mas o Marcelo disse que ele iria, e pegou a arma dele.

Depois ele voltou…
Depois que ele saiu, eu fui fechar o portão, mas o portão não trancava, apenas encostava, quando eu tinha voltado de fechar o portão ele voltou. Meu deus do céu… Que coisa horrível. Ele estacionou o carro, e eu pensei: ‘Vou tentar conversar com esse cara; quem é esse cara?’. Mas ele chegou desceu do carro e já puxou a arma, eu puxei meu distintivo e mostrei para ele dizendo ‘Para, cara! Para, cara! Aqui é polícia, aqui é uma festa de família’.

Você ficou na linha de tiro.
Eu fiquei, mas eu não me lembro disso, eu só lembro apenas de dizer: ‘Para! Para, cara! Para!’, Eu falava, gritava, e pedia para ele parar com aquilo, eu não senti medo, eu só queria que aquilo acabasse. A gente estava numa festa, a gente estava comemorando, qual direito ele tem de fazer aquilo? Até a porta do hospital, eu nem sabia quem era aquela pessoa. Até agora eu não acredito no que aconteceu. Hoje a dor que a gente sente é muito grande, foi uma cena de terror, foi horrível. Eu não entendo esse cara, ele não pensou nem na mulher nem na filha dele, porque ele foi para matar ou morrer, mas ele matou. Muita maldade, não sei…. É uma violência que eu nunca tinha vivenciado, uma maldade que eu não sabia que existia.

E agora?
Na verdade, até parece mentira, eu não acredito que essa coisa tenha acontecido. A minha ficha parece que não caiu. Mas aconteceu, essa loucura aconteceu, o Marcelo morreu. Um estranho decidiu que ele iria aparecer na festa de aniversário dele, gritar Bolsonaro e meteu bala. Não parece verdade isso tudo. Agora eu estou lutando pelo Marcelo, pela justiça, para que as coisas sejam ditas e não sejam distorcidas, para que acabe essa violência simplesmente pelo fato de as pessoas pensarem diferente. Enfim, acabe essa violência. Que o nome do Marcelo seja o último, que toda essa tragédia sirva de exemplo, e que as pessoas parem com isso. O Marcelo podia ser um zé-ninguém, ele era, mas ele era um brasileiro que tinha suas convicções e lutava pelas coisas que acreditava.

Correio Braziliense