Fascistas apelarão a discurso sobre “cristofobia”

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Foto: Arquivo Pessoal

A cristofobia — termo utilizado para discurso de que os cristãos correm risco de serem silenciados — deve voltar com tudo nessas eleições, alerta Magali Cunha, editora-geral do Coletivo Bereia — agência de checagem especializada em mídias religiosas e conteúdos sobre religiões e suas lideranças. O tema deve ser um dos recorrentes na disseminação de desinformação com objetivo eleitoral junto com a ideologia de gênero — conceito que já é uma inverdade — o aborto e a erotização de crianças, que estão sempre em alta.

A pesquisadora defende ser possível misturar política e religião, “o que é algo legítimo e não deve ser demonizado”. O problema, ressalta, é transformar a religião em um instrumento de campanha eleitoral, de onde surgem as fakes news. Criar o pânico como forma de manipulação, em busca do voto.

A agência de checagem religiosa foi criada a partir de uma pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”. Segundo o estudo, 33,3% dos evangélicos confiam mais em pessoas conhecidas que em veículos jornalísticos e/ou buscas na internet.

O nome Bereia faz parte de uma narrativa bíblica do Novo Testamento. O texto registra um elogio aos bereanos, homens e mulheres, que mantiveram não apenas uma abertura em ouvir as Escrituras, mas de examiná-la.

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“Os judeus que moravam em Bereia tinham a mente mais aberta que os de Tessalônica e ouviram a mensagem de Paulo com grande interesse. Todos os dias, examinavam as Escrituras para ver se Paulo e Silas ensinavam a verdade. Como resultado, muitos judeus creram, assim como vários gregos de alta posição, tanto homens como mulheres.”

Hoje, além de checagem de informações, o coletivo — formado por jornalistas e estudantes — oferece cursos e palestras para o enfrentamento de fake news nesses ambientes, por meio de cursos e palestras. Leia a entrevista completa:

Como funciona a metodologia da checagem do Coletivo Bereia? Qual a diferença para as agências de fact-checking não religiosas?

São duas diferenças: nós quando criamos o coletivo, estudamos todas essas agências, de dentro e fora do Brasil. Fizemos uma síntese das classificações de conteúdo e criamos nossa metodologia que não difere na forma, mas no conteúdo, que é religioso. Coletamos material para análise em sites gospel e também contamos com especialistas de teologia, como pastores e padres. A linguagem também é diferente, porque pensamos em uma que criasse identificação. Somos muito respeitosos com a crença para não criar uma rejeição desse público, principalmente dos fiéis que acabam sendo veículos de notícias falsas.

A comunidade evangélica é um meio propício para a disseminação de notícias falsas?

Sim. O sentimento de pertencimento a igreja é muito grande. É uma comunidade de irmão e irmãs. Essa própria linguagem de família “irmãos” e “irmãs”, é de uma instituição que se confia. Essa confiança se transfere para aquilo que chega no grupo de Whatsapp, no Facebook de integrantes do grupo da igreja, e acaba facilitando a disseminação de notícias falsas. Tanto no grupo da igreja, quanto em relação às lideranças. Tem um outro elemento que descobrimos: o Whatsapp como um novo ir à igreja. O aplicativo de mensagem por celular tem o papel de preencher o espaço de tempo dos fiéis que não estão no templo. Eles recebem orações, aconselhamentos dos pastores, estudos. Acaba sendo basicamente uma igreja virtual, e as fake news vêm nesse meio.

Quais as notícias falsas mais comuns nesse meio?

A sexualidade e a moralidade sexual é um tema muito forte. A ideologia de gênero, ela própria já uma inverdade, o aborto e a erotização de crianças estão sempre em alta. Em segundo lugar, vem os temas referentes à saúde. Com a pandemia da covid, essas checagens tomaram muita energia nossa e até hoje, ainda em 2022, temos que fazer checagem sobre teorias da conspiração de como a doença surgiu, sobre as vacinas. O terceiro tema é a política nacional. E com as eleições este ano, é uma das nossas grandes frentes de trabalho. Outro tema de desinformação é a perseguição dos cristãos no Brasil, chamada de “cristofobia”, termo utilizado para em discurso de que os cristãos correm risco de serem silenciados.

Referente a cristofobia, como ela é usada politicamente?

O termo “cristofobia” vem sendo usado com mais força por políticos ultra-conservadores no Brasil desde as eleições municipais de 2020. Ele não se aplica, por conta da predominância cristã no país, onde há plena liberdade de prática da fé para este grupo. Manipula-se, neste caso, a noção de combate a inimigos para alimentar disputas no cenário religioso e político. Além disso, se configura uma estratégia de políticos e religiosos extremistas que pedem mais liberdade e usam a palavra para falarem e agirem como quiserem (mentirem e caluniarem, inclusive) contra os direitos daqueles que consideram “inimigos da fé”. Ou seja, contra ativistas de direitos humanos, partidos de esquerda, movimentos por direitos sexuais e reprodutivos, religiosos não cristãos e, até cristãos progressistas – nem os da mesma família da fé são poupados. É um apelo em torno de terrorismo verbal e pânico moral para afetar cristãos e convencê-los a apoiar estes políticos ultra-conservadores.

A desinformação sobre política já se intensificou com a proximidade das eleições?

Sim, a questão de ideologia de gênero e a sexualidade é muito explorada politicamente. Ela é muito utilizada por parlamentares e ministros. Foi um tema recorrente nas eleições de 2018, que voltou nas eleições municipais de 2020 e volta agora em 2022. Um outro tema atual são as realizações do governo de Jair Bolsonaro. Há muita coisa manipulada em termos de dados, principalmente em relação às políticas para mulheres, de uso da terra e para a educação. A cristofobia também deve voltar com tudo.

A bancada religiosa no Congresso e os pré-candidatos cristãos aparecem com frequência como atores da desinformação?

Sim. Nós monitoramos personagens do mundo religioso — pastores, padres, políticos. Dos ministros de Estado declaradamente cristãos — evangélicos ou católicos — do governo Bolsonaro, todos tiveram ao menos uma checagem nossa. No total, foram oito ministros que tiveram ao menos uma checagem de conteúdo falso registrado. Dentre parlamentares, alguns se destacam: Marco Feliciano (PL-SP) é campeão de desinformação. O deputado católico Diego Garcia (Republicanos-PR) também divulga muita notícia falsa. No senado, Arolde de Oliveira era campeão e deixou de herança o Pleno News (site de notícias com visão conservadora). Nós checamos mais o discurso de políticos que atuam na esfera federal, mas recebemos pedidos dos leitores e sempre tentamos analisar também políticos que atuam na política local. Daí surgem nomes como os vereadores Nikolas Ferreira (PL-MG) e Gabriel Monteiro (PL-RJ) .

A mistura de política com religião pode estimular notícias falsas?

Sim, é um recurso. Primeiramente, pode-se misturar política e religião tranquilamente. Isso é legítimo e não deve ser demonizado. A questão é como isso é feito. Muitas vezes há a instrumentalização da religião para a campanha, símbolos que são usados em prol de um objetivo e aí surgem as fakes news. O pânico geral como forma de manipulação.

E como ocorre essa instrumentalização da religião para fins políticos?

A instrumentalização da fé, da figura de Deus e de símbolos religiosos, como imagens e personagens da Bíblia está em alta no Brasil. Coisa antiga, o uso da fé com vistas à realização de objetivos de pessoas ou grupos, com base em projetos econômicos e/ou políticos, ganha força numa atmosfera social presente em que pessoas se movem cada vez mais pela emoção. Neste clima, usa-se muito pouco a reflexão e a razão e prevalece a lógica simplista das respostas imediatistas e mágicas aos dilemas da vida. Tais respostas são conteúdo farto da cultura da autoajuda. Ela se encontra na ampla oferta de cursos e palestras presenciais e midiatizadas, dos modernamente denominados “coachs”. Tanto dentro quanto fora dos espaços religiosos, a pessoa com o seu poder e esforço próprios, é quem “determina” e faz acontecer ou que faz Deus agir. Com esta forma de interpretar o mundo, a religião se torna resposta ao desejo de se eliminar os desafetos, os diferentes, os considerados impuros e limpar o mundo para a realização do que é certo e puro.

E, por fim, como seria possível barrar as fake news?

Para barrar as fake news é preciso não só identificá-las e apresentar a informação verdadeira e coerente mas uma ação conjunta de veículos de mídia comprometidos com a informação, projetos de checagem, instituições de ensino (escolas, universidades) para educar a população sobre o ecossistema da desinformação: como ela é produzida, como ela circula, em especial como as plataformas de mídias sociais e seus algoritmos funcionam. O intuito é que as pessoas se vejam como parte deste sistema e se sintam comprometidas no enfrentamento, deixando de ser usadas para desinformar.

O Globo