Morre mais um expoente da ditadura militar

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Foto: Estadão

Morreu em seu apartamento em Copacabana na noite de quarta-feira, 24, aos 86 anos, Heitor Aquino Ferreira. Enfrentava há alguns anos três sessões semanais de diálise e terapias agressivas para conter o mieloma múltiplo, um câncer hematológico. Fez a tradução definitiva de Animal Farm (A Revolução dos Bichos), de George Orwell. Trabalhava de madrugada na revisão das traduções de livros da Coleção de História Mundial, que organizou para a editora Nova Fronteira, a maioria biografias consagradas de Winston Churchill, Stalin, Hitler, Mussolini, Franklin Roosevelt e De Gaulle. Se recusava a publicar livros de eventos ou personagens contemporâneos com a explicação: “História recente é vingança, não é história.”

Tinha 27 anos de idade, gaúcho de Arroio Grande, era capitão de cavalaria em 1964 quando os militares tiraram João Goulart do poder e instalaram o regime que durou até 1985. Saiu do Exército logo depois. Foi secretário de Golbery do Couto e Silva de 1964 a 1967 e de Ernesto Geisel de 1971 a 1979. Nesse período produziu um meticuloso diário que, ao final, encheu dezessete cadernos escolares com cerca de meio milhão de palavras.

Guardou bilhetes de Golbery e Geisel e documentos confidenciais de ambos no exercício do poder. Por orientação de Golbery entregou quase tudo ao jornalista Elio Gaspari, que, em grande parte baseado nesse material, produziu seu magistral relato em cinco volumes sobre a ditadura. “Naqueles cadernos, parcialmente lidos por Geisel, está o mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito em toda a história do Brasil”, reconheceu Gaspari. Entregou tudo a Gaspari? “Não. Nem tudo. O que sobrou queimei ali aos pés daquela palmeira”, disse a um amigos que o visitou quando morava em Teresópolis.

Heitor Ferreira foi o silencioso homem de bastidores de Golbery e Geisel. Era da “Turma da Sorbonne”, como se identificavam os generais, Castello Branco à frente, convencidos de que uma vez tendo tomado o poder, a salvação para eles, era devolve-lo aos civis sem rupturas violentas. Durante o governo Emilio Médici foi exilado na Amazônia, onde trabalhou no Projeto Jari, do milionário americano Daniel Ludwig. Demitido pelo general João Figueiredo, foi acusado por ele mais tarde instalar grampos em seu gabinete presidencial — o que ele confirmou à revista Veja.

Seu grande momento no poder se deu em 1977 na demissão pelo presidente Ernesto Geisel de seu ministro do Exército, Sylvio Frota. O regime se dividida em duas alas rivais. Com Geisel estavam os fardados adeptos da política de abertura “lenta, gradual e segura”. Do outro, a linha dura, decidida a aprofundar a ditadura, com Sylvio Frota à frente. Quando os dois lados chegaram a ponto do rompimento, Geisel decidiu demitir Frota. Coube a Heitor, como sempre, fazer o balanço dos apoios do presidente entre os generais com comando de tropa. No dia 12 de setembro, o da demissão de Frota, Heitor Ferreira madrugou na ala militar do aeroporto de Brasília. Geisel convocara os generais para uma reunião do Alto Comando sem especificar a pauta. Heitor cuidou de levar direto para o Palácio do Planalto apenas os generais comprometidos com a política de abertura. Garantiu assim que não houvesse resistência organizada da Linha Dura.

Heitor viu e ouviu mais do que registrou nos diários. Mas não dava entrevistas sobre o regime militar nem sobre sua vida na política na redemocratização, quando se uniu a Paulo Maluf. Nem para pesquisadores acadêmicos. Seu mundo eram os amigos, os livros, filmes e música. Enquanto teve saúde fumava charutos cubanos e ouvia música trabalhando. Frank Sinatra e Tom Jobim sempre. Noel Coward para se distrair. Jazz todos os dias.

Revelava a personalidade de seus chefes no poder da perspectiva do observador falsamente distante. Uma história: “Em um meu aniversário perguntei ao Ajudante de Ordens que saia da sala do presidente Geisel se ele tinha se lembrado do dia. Ele respondeu: ‘Sim, o presidente deu ordens para você ser feliz.”. Outra, mais séria: “Dois coronéis foram à sala de Golbery com a ideia de ouvi-lo sobre o plano de fazer uma incursão de comandos no Uruguai, prender o exilado Leonel Brizola e traze-lo de volta para o Brasil. Queriam um sim ou um não. Golbery só tinha a perder se respondesse. Como quem pede um cafezinho, sem tirar os olhos de um papel qualquer que ele fingia ler, disse sem alterar a voz…’E quando é que vocês vão? O plano morreu ali”.

Estadão