Policiais enterram risco de golpe de Bolsonaro

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Foto: Reprodução

O presidente Jair Bolsonaro tem cada vez menos espaço para tentar permanecer na Presidência a despeito do resultado das urnas eletrônicas. A viabilidade de uma aventura golpista começou a esvanescer em 2020, quando a demissão de Sérgio Moro retirou do presidente a bandeira da moralização da política. Afinal, o ex-juiz deixara o cargo em razão da interferência política na Polícia Federal, que, então, investigava o senador Flávio Bolsonaro, o filho do presidente que comprara uma mansão por R$ 6 milhões em Brasília.

Bolsonaro viu, desde então, minguar o apoio que recebia na caserna. O que restou virou expressão da defesa de salários milionários pagos a generais do governo, do reajuste muito acima do recebido pelo funcionalismo e do pagamento de auxílios revigorados. O bolsonarismo militar tem uma origem ideológica, uma visão de mundo comum, que liga parte da caserna ao presidente, mas até seus críticos nos quartéis lembram que sua manutenção é auxiliada pelas sinecuras distribuídas a oficiais e a seus parentes e amigos, fazendo da participação verde-oliva no governo uma espécie de projeto pessoal de parte dessa burocracia.

Em Os Donos do Poder, Raymundo Faoro já notara que a participação castrense no estamento condutor do País era parte indissociável da história do patrimonialismo. Ele ajudou a construir, nas palavras do jurista e cientista político, “essa civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra âmbula entre as sombras”.

A dificuldade de Bolsonaro de unir atrás de si as Forças Armadas pode ser medida pela decisão de substituir os comandantes militares em 2021; queria pessoas opacas, de luzes coadas por um vidro fosco, no lugar dos três que nomeara no começo do governo. Para a Força Aérea, nomeou o bolsonarista Carlos de Almeida Baptista Junior, brigadeiro tratado entusiasticamente já em 2019 pelos assessores do presidente. A Marinha foi entregue ao almirante Almir Garnier Santos, que achou normal fazer desfilar tanques pela Esplanada no dia em que o Congresso rejeitou a emenda do voto impresso.

Se o desfile era mera coincidência, porque, neste ano, durante o exercício em Formosa (GO), ele não se repetiu? Nem o presidente Bolsonaro foi assistir às manobras… Por que não se tentou, desta vez, fazer demonstrações na Praça dos Três Poderes? Movimentos políticos costumam prestar muita atenção ao que Émile Durkheim chamou de “dimensão simbólica que penetra a vida social”. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, ele afirmou que, “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”.

Bolsonaro e os que o seguem precisam da reprodução constante desses símbolos e aproximá-los da forma como são vividos nas religiões. Em 2019, o desafio do presidente era fazer seu movimento político não ser percebido como mera captura do Palácio por antigos atores que sempre viveram em torno do Estado. Sabe-se, desde a Florença renascentista, que este tem o seu fundamento nas boas armas e nas boas leis produzidas por meio do consenso. Na ausência do último, apela-se à corrupção ou à força. Da queda de Moro ao 7 de Setembro de 2021, Bolsonaro pareceu manter a aposta naquela última.

Ao perceber que a maioria dos oficiais generais não o acompanhariam em uma aventura e que a sociedade civil se organizava em defesa da democracia, sobrou ao presidente atrair o Centrão para o governo e, por meio do orçamento secreto, conseguir o que não obteve por meio de ameaças de ruptura institucional. Bolsonaro manteve, entretanto, o discurso de contestação do resultado das urnas. Quis condicionar sua decisão à aceitação de sugestões do Ministério da Defesa à Justiça Eleitoral, estratégia que parece fazer água.

Pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que até mesmo onde mais se temia a influência do bolsonarismo – as forças policiais – a adesão à ideia democrática é grande (84% de apoio) e o mais importante de tudo: 81% dos policiais entrevistados em todo o País querem que o candidato declarado vencedor pela Justiça Eleitoral suba a rampa do Planalto. É verdade que esse índice é maior entre os policiais federais (89,1%) e menor entre os militares (76,5%), mas ainda assim o alto porcentual afasta definitivamente o caminho do golpe para quem deseja contestar as eleições.

Sobraria ao bolsonarismo a mobilização de um turba, uma ralé armada que seria contida pelas forças de segurança com as mesmas consequências vistas nos Estados Unidos, após a derrota de Donald Trump: condenações e prisões dos envolvidos, ameaçando abrir as portas do cárcere ao ex-presidente. Assim, resta a seu candidato lutar para vencer nas urnas. Só isso pode lhe garantir mais quatro anos no poder. E é por isso também que ele decidiu comparecer no domingo ao debate entre os candidatos à Presidência.

Vedado o caminho golpista, resta a Bolsonaro a submissão às regras do jogo e à disputa pelo voto dos brasileiros nas urnas eletrônicas. Uma disputa que as pesquisas indicam envolver o presidente e o petista Luiz Inácio Lula da Silva. No primeiro debate dessa campanha, a Defesa Nacional, suas Forças Armadas e os militares estiveram ausentes. Nenhum dos candidatos os citou. Nem as ameaças ao pleito. As pesquisas mostram que ameaçar a democracia contraria a maioria dos eleitores. Daí porque Bolsonaro tentou ligar Lula à Venezuela e o petista o chamou de mentiroso.

Mas o Brasil de 2022 não é o de 2018. Em 2018, o general Eduardo Villas Bôas tuitava para manter Lula na cadeia. Agora, manifesta-se na rede para defender a honra do Exército, tentando ligá-la à da Nação, como faziam os tribunos do século 19. Esqueceu o general que, aos olhos do marechal Deodoro da Fonseca, o soldado cidadão que proclamou a República se transformou em pouco tempo no “patriota de rua”, comprometendo a disciplina.

 

O novo tuíte de Villas Bôas trouxe ainda uma na ferradura. Ao se manifestar sobre a ordem do dia do general Freire Gomes, lida diante de Bolsonaro, no Dia do Soldado, ele escreveu: “Aos que nos atribuem possíveis intenções de agir fora do princípio da legalidade, legitimidade e estabilidade, nosso comandante disponibilizou uma didática fonte àqueles que, com boas intenções, desejam conhecer a alma do Exército.”

Assim, tenta-se fazer o Brasil chegar a mais uma eleição diante de seu passado. Buscou-se primeiro reviver as crises militares da República, em meio ao aparelhamento do Estado, típica sobrevivência do patrimonialismo descrito por Faoro. Procura-se agora o despertar de paisagens idílicas que nunca existiram e, dessa maneira, colocam-se outras armadilhas diante de nossa civilização, cobrindo-a, como escreveu o jurista e pensador, com uma “túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante”.

Estadão