Um milhão de brasileiros firmaram Carta Democrática
Foto: Felipe Rau/Estadão
A carta pela democracia organizada pela Faculdade de Direito da USP alcançou 1 milhão de assinaturas nesta quinta-feira, 11, dia em que foi lida no Largo de São Francisco. O manifesto, redigido em meados de julho em reação às investidas do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra as urnas eletrônicas, teve inicialmente 3 mil signatários de diferentes setores da sociedade civil e viu o número de adesões crescer consideravelmente após ser aberto ao público em geral, em 26 de julho. O texto foi lido em pelo menos 77 faculdades de Direito em 26 Estados e no Distrito Federal, conforme levantamento do ex-presidente da Federação Nacional dos Estudantes de Direito Rodrigo Siqueira Junior.
O diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo, celebrou o feito. “Maior ‘Pindura’ da história! UM MILHÃO DE SUBSCRITORAS e SUBSCRITORES. ‘Pindura’ a ditadura! Parabéns às brasileiras e aos brasileiros que aderiram à Carta pela Democracia. Viva a ‘cartinha’”, escreveu. Dias atrás, o presidente Bolsonaro minimizou a importância do documento e disse não precisar de “cartinha”.
O “Pindura” é uma tradição entre estudantes de direito em que, no dia 11 de agosto — dia em que o imperador D. Pedro I instituiu os dois primeiros cursos de Direito no País — alunos celebram o dia comendo e bebendo em restaurantes sem pagar a conta.
Na capital paulista, o ato teve aproximadamente 8 mil pessoas do lado de fora da Faculdade de Direito da USP. Havia cerca de 600 pessoas dentro, entre intelectuais, políticos, artistas e líderes de movimentos sociais. Os discursos destacaram o sistema eleitoral brasileiro diante de ameaças de retrocessos. Também ocorreram manifestações do público em apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A missiva é inspirada na Carta aos Brasileiros de 1977 – um texto de repúdio ao regime militar, redigido pelo jurista Goffredo Silva Telles, e lido também no Largo de São Francisco.
“Queremos eleições livres e tranquilas, um processo eleitoral sem fake news, sem intimidações”, afirmou o reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Jr. Durante o seu discurso, Patrícia Vanzolini, presidente da seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), defendeu o aprimoramento da democracia, mas enfatizou que o momento agora é de reafirmação do regime democrático. “Esse é o momento que diremos que sim, nós queremos avançar e não aceitaremos retrocessos”.
No mesmo dia, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Edson Fachin, divulgou uma carta sobre os manifestos. Em tom contundente, o ministro escreveu que a defesa da ordem democrática e da dignidade humana “impõe a rejeição categórica do flertar com o retrocesso”.
Todos os principais candidatos à Presidência, com exceção de Bolsonaro, são signatários. O atual chefe do Executivo chamou de “cara de pau” e “sem caráter” quem aderiu ao movimento.
Em publicação em sua conta pessoal no Twitter no começo da tarde desta quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro (PL) ironizou os atos em defesa da democracia que ocorrem em várias grandes cidades do País desde o começo do dia. Em vários tuítes, ele publicou sobre a redução de preço do óleo diesel anunciada pela Petrobras.
O documento em defesa dos tribunais superiores e da Justiça Eleitoral se antecipa aos atos de 7 de Setembro, que estão sendo organizados por apoiadores de Bolsonaro.
Nas redes, opositores a Bolsonaro dominam menções nas redes no debate sobre a carta pela democracia. Segundo o Monitor de Redes do Estadão, a carta teve sete vezes mais menções no Twitter ao longo desta quinta-feira do que o Dia da Independência — cujo debate se concentra no ato político convocado por Bolsonaro, como mostrou o blog.
O levantamento do Estadão na plataforma criada em parceria com a empresa Torabit contabilizou 116,9 mil menções no Twitter e no YouTube sobre a carta até as 18h. O assunto explodiu a partir das 10h, quando teve início o evento na USP. Por outro lado, a medição sobre o 7 de Setembro chegou a 15,8 mil menções. Alguns posts prometem uma “resposta” para o 11 de agosto.
O debate sobre a carta pela democracia na rede social na manhã desta quinta-feira ficou marcado pela oposição a Bolsonaro no Twitter. O nome do presidente ficou em terceiro lugar nos termos relacionados a esse tipo de conteúdo, com predomínio de sentimento negativo. Críticos ainda conseguiram alavancar o termo “Bolsonaro sai, democracia fica” ao primeiro lugar nos trending topics do Brasil e oitavo no mundo.
Leia a íntegra da Carta
Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o estado democrático de direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.
Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.
Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.
A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.
Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.
Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.
Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.
Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.
Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.
Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.
Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.
No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.
Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:
Estado Democrático de Direito Sempre!!!!