O advogado que levou militares argentinos à prisão
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O portenho Ricardo Darín precisou do bigode ícone dos anos 80 e de óculos de grau retrô para lembrar fisicamente o advogado Julio César Strassera (1933-2015). Mas talvez o que conte mais, sobretudo para o povo argentino, é o que o “rosto” do cinema do país tem em comum com o seu personagem em “Argentina, 1985”, o promotor responsável pela condenação dos chefes da ditadura na Argentina (1976-1983).
Os dois têm um quê de herói para os argentinos, não? E daqueles que não deixam o sucesso subir à cabeça, mantendo o foco no trabalho e os pés no chão. “Bem que gostaria de não ser vaidoso. Mas todos os atores do mundo são”, brinca Darín, um ex-galã de novelas que hoje é uma referência no cinema argentino. “É intrínseco à condição humana lutar permanentemente com o ego, nosso inimigo número 1”, completa o ator, conhecido no meio por ser o oposto do que diz e dispensar qualquer traço de afetação.
Aos 65 anos, ele é motivo de orgulho em sua terra, um pouco como Lionel Messi no mundo do futebol. Darín está no elenco dos três últimos filmes argentinos indicados ao Oscar de melhor produção estrangeira. Foi o ex-oficial de Justiça obcecado por um crime mal explicado em “O Segredo dos Seus Olhos”, de Juan José Campanella, que conquistou nesta categoria a estatueta da Academia em 2010.
“Gostaria de não ser vaidoso. Mas todos os atores do mundo são. É intrínseco à condição humana lutar permanentemente com o ego”
Mais dois dos filmes que estrelou disputaram o troféu. “O Filho da Noiva” concorreu em 2002, com o ator vivendo o tipo estressado que ajuda o pai a se casar com a mãe na igreja. Em “Relatos Selvagens”, candidato em 2015, seu personagem é um engenheiro que surta diante da burocracia governamental, mandando tudo para os ares (literalmente).
Com o papel do promotor Strassera, aquele que conseguiu provar a culpa dos líderes da ditadura nas torturas, nas execuções e nos desaparecimentos, há chances de mais um concorrente ao Oscar figurar em sua filmografia. Uma das estreias deste dia 21 no Amazon Prime Video, após a sua première mundial no Festival de Veneza, além de passagens pelo Festival de San Sebastián e Festival do Rio, “Argentina, 1985” é o representante do país na corrida pela estatueta dourada.
Até agora, no total, nove obras protagonizadas por Darín foram escolhidas pela Argentina para disputar as cinco vagas de filme estrangeiro. Entre elas, também estão “Abutres’’ (2010), com o ator na pele de advogado envolvido em fraudes de indenizações de vítimas de acidentes de trânsito, e “A Aura” (2005), com Darín no papel de epiléptico que fantasia cometer o crime perfeito.
Isso só confirma a sua posição de embaixador do cinema argentino. “Após a ditadura, muitos diretores revitalizaram o nosso cinema, lançando um novo olhar sobre a história do país, além de contarem tramas originais também. Como ator, simplesmente tenho a sorte de fazer parte desse grupo”, despista Darín, que teve dois encontros com o Valor, um em Veneza e outro em San Sebastián.
O ator rejeita a ideia de idolatria, tanto para si quanto para o personagem que interpreta no thriller político dirigido por Santiago Mitre. “O próprio Strassera dizia que alguém como ele, naquelas circunstâncias, não poderia ser considerado um herói”, afirma Darín, referindo-se ao sentimento que o promotor deixa claro aqui. O de não ter feito o suficiente durante os anos sombrios na Argentina.
Inicialmente, o promotor reluta em aceitar a tarefa de levar os comandantes da ditadura ao banco dos réus, pela violação dos direitos humanos. Principalmente por Strassera, muito desconfiado, achar que aquilo não chegará a lugar algum, sendo apenas uma farsa.
“Era o princípio da democracia. Como havia passado apenas um ano e meio desde o fim da ditadura, ninguém confiava ou acreditava na realização de um julgamento. Muitos eram contra. Só depois de alguns meses é que a população passou a ter fé”, recorda o ator.
O que garantiu que o julgamento ganhasse peso foi a investigação de cinco meses conduzida por Strassera e seu assistente mais jovem, Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani). A dupla reuniu um grupo de estudantes de direito e advogados recém-formados para colher provas pelo país inteiro, com o depoimento das vítimas. Não só de quem sofreu a violência como o das mães de desaparecidos.
“Era preciso comprovar a responsabilidade de quem estava no comando nas ações de seus subalternos”, diz Darín, lembrando que ninguém do ponto mais alto da hierarquia pegou uma arma ou torturou os prisioneiros. “O problema estava em encontrar a conexão para mostrar que as ordens vinham de cima e que se tratava de uma violação sistemática, de um plano de aniquilação.”
Foi a força dos testemunhos registrados que comoveu o povo nas ruas. Até porque, até então, uma grande parcela da população não sabia e, em alguns casos, preferia não saber o que tinha realmente acontecido. Parte da classe média tinha até apoiado a ditadura, ao ter comprado a ideia de “ameaça do comunismo”.
“Cerca de 50% da classe média argentina foi cúmplice. Ela é sempre o problema, por ser a classe que luta para não perder o que já conquistou e ainda querer alcançar mais. Os ricos sempre são ricos e os pobres, infelizmente, continuam onde estão”, afirma o ator.
Um dos testemunhos que mais serviu de tapa na cara na classe média foi o da física Adriana Calvo (1947-2010), sequestrada grávida e forçada a um parto desumano dentro de um carro. O que esta e outras vítimas revelaram despertou o interesse da mídia, que passou a relatar o que acontecia no tribunal para o país inteiro. E isso foi fundamental, já que o julgamento não foi transmitido ao vivo.
“Ganhar a opinião pública foi o que mudou o curso da história”, comenta Darín, impecável ao representar desde a ansiedade inicial à obstinação do promotor, que não desistiu mesmo diante de ameaças de morte. “Pelo que pesquisei de Strassera, ao começar o trabalho, ele sofria de baixa autoestima, o que só foi melhorando ao longo do processo. E o mais interessante para mim, como ator, foi explorar esse arco do personagem.”
Um dos momentos mais fortes de “Argentina, 1985” é o da argumentação final do promotor no julgamento. Ao explicar que usa uma frase que não lhe pertence, mas sim a todo povo argentino, ele solta o histórico “Senhores juízes: nunca mais”, pedindo que o horror da ditadura não se repita. E Strassera sequer se levanta da cadeira para as suas considerações finais.
É como se ele não quisesse aparecer, deixando o ego de lado – diferentemente da postura da maioria dos advogados nos filmes e nas séries, sempre comandando uma espécie de show no tribunal. O promotor prefere que a atenção caia sobre o conteúdo, sem puxar os holofotes para si mesmo, algo que um ator como Darín consegue calibrar muito bem.