Acampamentos golpistas se sustentam em mentiras, dizem especialistas

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Foto: Vinicius Schmidt/Metrópoles

Mais de 20 dias após a vitória de Lula nas eleições, apoiadores de Bolsonaro continuam nas portas de quartéis contestando o resultado das urnas e pedindo por uma intervenção militar. Além disso, bloqueios e interdições voltaram a ser registradas em algumas partes do país. Por mais que o tempo passe, o grupo contestador mantém o fôlego e segue acreditando em fake news. Mas por que isso continua acontecendo?

O Metrópoles conversou com três especialistas que estão mergulhados na pesquisa desse ambiente de desinformação para entendê-lo.

Eles explicaram que a motivação de quem acredita nas chamadas “fake news” tem mais relação com emoção que com razão, que as teorias conspiratórias já foram usadas outras vezes na história e que a solução da propagação de conteúdo mentiroso é muito complexa.

Antes de chegar na explicação, é preciso observar a “realidade” vivenciada até hoje nos acampamentos bolsonaristas.

Notícias falsas e teorias conspiratórias chegam diariamente em grupos de WhatsApp e Telegram espalhados pelo país, onde militantes dessas manifestações pró-golpe se organizam. Nessa mistura de mobilização ao vivo e por mensagem, foi consolidado um universo paralelo, com regras e realidade própria.

Teve a vez que manifestantes comemoraram chegada de “fuzis para intervenção militar” em Feira de Santana (BA) ou uma suposta prisão do ministro do STF Alexandre de Moraes em Porto Alegre (RS) e até o cancelamento das eleições após uma anunciada comprovação de fraude.

Entre o conteúdo compartilhado nos grupos, tem o boato de que Lula estaria internado em estado gravíssimo no hospital e que outra pessoa se passaria por ele. Mais recente, há uma falsa legenda no discurso do emir do Catar em que ele denunciaria fraude nas urnas.

Os acampados também caem constantemente em pegadinhas com nomes inventados de autoridades.

O sociólogo digital Leonardo Nascimento pesquisa a circulação de informações em aplicativos de mensagens desde 2020. No começo, o foco do grupo do qual o pesquisador faz parte, patrocinado pela Internetlab, era a pandemia da Covid-19.

Com o tempo, a pesquisa acabou migrando para grupos radicais de extrema direita no Brasil. Nascimento, que é da Universidade Federal da Bahia (UFBA), coleta dados de centenas de grupos de Telegram com esse viés.

A variedade é grande. Há grupos temáticos de debate político, religiosos, anti-vacina, místicos, de Colecionadores Atiradores e Caçadores (CACs) e até de “incels”, que em resumo são “celibatários involuntários”.

Dentro desses grupos, Nascimento disse perceber diferentes origens dos conteúdos compartilhados. Existe muita produção “orgânica”, de diversos participantes.

No entanto, também há casos de um único perfil chegar a mandar 100 mil mensagens por dia em diversos grupos e canais do Telegram, segundo o pesquisador da UFBA. Para ele, isso indica que alguém programou aquele perfil para enviar mensagens automáticas.

Uma das questões difíceis de entender é como as pessoas acreditam nas notícias falsas e teorias conspiratórias que embasam o questionamento das eleições e a defesa de uma intervenção militar no país, mesmo quando elas parecem absurdas.

Nascimento afirmou que a resposta é complexa e as redes sociais são apenas um dos fatores. Entre os pontos que ele aponta está a forma como a ditadura militar no Brasil foi entendida por parte da população, que não foi resolvida totalmente.

Outro ponto que Nascimento aponta é o que ele chama de um massacre da imagem do presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores no noticiário político e mais forte ainda com a operação Lava Jato.

Junto a isso, está a negação completa à mídia tradicional. Dentro desses grupos radicais, todo o conteúdo produzido pelo jornalismo é desprezado. Assim, essas pessoas passam a se informar apenas por essas redes de grupos de aplicativos de mensagem.

“A desinformação é uma semente, para ela florescer precisa de um solo fértil. O solo fértil é o processo de constituição das crenças pessoais das pessoas. Isso é um processo coletivo, emocional e de longo prazo”, defendeu Leonardo Nascimento.

Especialistas ouvidos pela reportagem explicam que o questionamento das urnas eletrônicas não é de agora – lembrando que não existe absolutamente nenhuma evidência de fraude nas urnas.

O “pecado original” teria sido lá atrás, após a eleição de 2014, quando a chapa do então candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) pediu a recontagem dos votos. Mas a situação se solidificou com a eleição de Jair Bolsonaro (PL).

As teorias sobre as urnas vieram de diferentes formas e intensidades. Teve a defesa do voto impresso, do voto auditável e a teoria mais recente é que as autoridades estariam escondendo os códigos-fontes do Exército, onde aí sim, seria revelada a fraude. Parte dessas teorias foram alimentadas por falas do próprio presidente Bolsonaro.

Natalia Leal, coordenadora da Lupa, agência de combate à desinformação, percebeu um crescimento fora do comum na propagação de informações falsas sobre as urnas eletrônicas nas eleições de 2022.

“A Lupa chegou a desmentir cerca de 200 boatos relacionados a urnas e segurança do voto em geral desde 2018. Desses, pouco mais de 100 foram esse ano”.

Natalia avaliou que o ataque organizado às instituições eleitorais foi algo que chamou bastante atenção nessa campanha política. E mais que isso, o envolvimento de instituições governamentais nesse ataque.

“O envolvimento de instituições muito importantes no Brasil, como o Ministério da Justiça e da Defesa, dentro dessa narrativa que é totalmente falaciosa, me preocupou no sentido de uma instabilidade institucional”, destaca Leal.

O professor de ciência política da UnB Carlos Oliveira pesquisa o impacto da desinformação no comportamento político há cinco anos. Um dos temas que Oliveira se debruça é o das teorias conspiratórias.

“As teorias conspiratórias, do ponto de vista político, funcionam para garantir o engajamento, para poder fazer com que as pessoas permaneçam seguindo um líder, uma ideia ou mantendo um engajamento”, explicou.

Embora intensificadas pelas mídias sociais, as teorias conspiratórias estavam presentes em momentos importantes da história do país. Oliveira cita como exemplo a Proclamação da República e o Golpe do Estado Novo.

No primeiro caso, espalhou-se o boato de que o primeiro-ministro Visconde de Ouro Preto iria cortar rendimentos e punir oficiais que tinham relação com movimentos republicanos.

“Só que isso não era verdade, mas foi se espalhando pelos quartéis e criou um clima para a Proclamação da República”, lembrou Oliveira.

Já no caso do Golpe do Estado Novo, em 1937, comandado por Getúlio Vargas, havia uma teoria da conspiração de que comunidades judaicas e comunistas estariam se organizando para tomar o poder no país.

“A ideia de comunismo no Brasil é uma teoria conspiratória quase que onipresente, ela está sempre no país ajudando nos golpes”, avaliou Oliveira.

Diante da propagação de informações falsas em massa, os pesquisadores se debruçam sobre a melhor maneira de conseguir diminuir essa disseminação.

Para Leonardo Nascimento, da UFBA, as plataformas precisam dar meios de análise delas, para que os pesquisadores possam estudar o que está acontecendo dentro delas. Ele também apontou que as plataformas precisam tomar medidas conjuntas de combate à desinformação, pois de forma isolada, os propagadores de informações falsas vão se aproveitando das brechas de cada uma para continuar a difundir o conteúdo enganoso.

Natalia Leal, da Lupa, avaliou que é necessário ter investigação mais profunda sobre quem financia esse tipo de propagação de informação falsa e com quais objetivos. Além disso, defendeu a necessidade de investimento e cobrança das plataformas para que elas se responsabilizem. Natalia ainda disse que é preciso o investimento em educação midiática e digital.

Carlos Oliveira da UnB defendeu a educação da população sobre a desinformação, mas também o uso de uma estratégia de proliferação de notícias verdadeiras. “Onde tem milhões de informações falsas circulando, o ideal seria fazer trilhões de informações verdadeiras circulando”, avaliou.

Metrópoles