Democracia brasileira vira exemplo para o mundo

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Foto: Sergio Acero Yate/El Tiempo/GDA

Desde que assumiu o cargo de diretora para as Américas da Human Rights Watch (HRW), há três meses, a colombiana Juanita Goebertus não parou de viajar. Primeiro para o Brasil, depois para o México e mais recentemente para a Europa e os Estados Unidos, para falar sobre os enormes problemas que assolam a região.

Embora esses desafios não sejam novos, seu mandato à frente desta prestigiosa instituição de defesa dos direitos humanos coincide com uma acentuada deterioração da democracia na região e crises agudas que atravessam vários países do hemisfério.

Em entrevista exclusiva, a advogada e cientista política faz um raio-X dos desafios para o continente, propõe soluções e tece duras críticas a Washington por seus “padrões duplos” ou o que ela descreve como “falta de interesse” na América Latina. Sobre o Brasil, diz que, ainda que o presidente Jair Bolsonaro tenha seguido o modelo trumpista de ataque ao sistema eleitoral, a força das instituições ajudou a preservar a democracia

Há uma preocupação com a consolidação de regimes autoritários e a deterioração da democracia na região. Que causas você atribui a isso?

O que temos visto é uma tendência, que não é idêntica em todos os países, de crescimento e expansão de poderes de regimes autoritários tanto à direita como à esquerda, onde o eixo comum é uma dramática perda de confiança na democracia, nos partidos políticos, no Estado de direito e nas instituições. A sociedade sente que houve uma quebra do contrato social e que os regimes democráticos não proporcionam bem-estar, o que criou um clima de polarização na América Latina, uma das regiões mais violentas e inseguras do mundo. A isso se somam dívidas históricas, como pobreza e desigualdade, o fracasso no combate à corrupção, o avanço do desmatamento e uma crescente crise migratória. Nesse contexto de enorme frustração, regimes autoritários que supostamente se levantam contra o fracasso de governos anteriores se oferecem como solução. E os cidadãos, em alguns casos, concordam em abrir mão de seus direitos. Mas o que vemos é que esses problemas, em vez de resolvê-los, criam novos tipos de violações de direitos humanos.

Quais seriam as soluções?

Devemos nos concentrar no fortalecimento da sociedade civil, organizações de mulheres, povos indígenas, defensores dos direitos humanos, que independentemente de ideologias estão levantando suas vozes e resistindo por seus direitos. Precisamos de uma investigação rigorosa sobre as questões da corrupção, sobre a insatisfação dos direitos econômicos e sociais e sobre as dinâmicas de insegurança que nos permitam agir a tempo. É fundamental que sejamos veementes contra as violações, sejam de esquerda ou de direita, porque prejudica muito a região ver sob um prisma só.

Recentemente, vários governos, como o da Colômbia, retomaram relações com a Venezuela alegando razões pragmáticas como comércio ou segurança nas fronteiras. Qual é a opinião da HRW?

Na carta que enviamos ao [presidente da Colômbia, Gustavo] Petro, reconhecemos que a retomada do relacionamento bilateral é essencial para a proteção dos direitos humanos. Mas isso não pode ser à custa de ignorar as violações muito graves que ocorreram e que, como documentado pela missão da ONU, os envolvidos nesses crimes são [Nicolás] Maduro e seu círculo mais próximo. É essencial olhar para isso e garantir que um processo de negociação permita que seja acordado ajuda humanitária para a população e garantias concretas para que nas próximas eleições seja possível ter maior transparência e respeito ao direito ao voto.

No Brasil, o debate eleitoral se concentrou em saber se Bolsonaro admitiria a derrota, o que parece estar se tornando uma tendência política na região. Quão preocupante é isso?

Bolsonaro se dedicou durante anos a atacar o sistema eleitoral apesar de ter sido eleito cinco vezes para o Congresso com o mesmo sistema e para a Presidência em 2018. O que ele fez, através da desinformação, foi atacar a legitimidade do processo para mais tarde poder dizer que não tinham escolha a não ser ignorá-lo. Felizmente, e apesar de este ter sido um período eleitoral extremamente violento, tivemos um primeiro e segundo turnos pacíficos. Embora Bolsonaro não tenha reconhecido claramente a vitória de Lula (mas reconheceu o processo de transição), isso permitiu que o mundo inteiro reconhecesse os resultados. Isso mostra que mesmo em países com líderes como Bolsonaro, onde a democracia foi posta em xeque seguindo o roteiro de Trump, quando há instituições eleitorais e judiciais fortes, é possível frear esse processo de deterioração.

Estamos a dois dias das eleições legislativas americanas e tudo indica que os republicanos vão retomar o controle do Congresso. Muitos candidatos negam os resultados eleitorais de 2020, defendem ideias que beiram a conspiração e até promovem mudanças que afetariam os direitos humanos de milhões. O que isso diz sobre o estado da democracia nos EUA?

É um fenômeno complexo. Embora no passado os EUA tenham tido políticas contraditórias em relação à América Latina, hoje estamos enfrentando uma situação muito difícil. Os EUA estão tão concentrados em seus próprios problemas internos que têm cada vez menos interesse em participar das principais negociações para a região. E isso anda de mãos dadas com uma tendência ao isolamento que veremos não apenas no Partido Republicano, mas em setores democratas. Ao mesmo tempo, esses regimes autoritários estão cada vez menos interessados ​​em respeitar o que diz Washington, que perdeu influência, deixando espaço para a penetração da Rússia e da China e para que esses mesmos regimes se alinhem para baixar os padrões democráticos e de direitos humanos.

No México, a HRW questiona o autoritarismo de López Obrador e a militarização do país sob seu mandato. Você não se surpreende com o silêncio dos EUA e de outros atores importantes da região?

Estamos muito preocupados. É evidente que os EUA criaram um duplo padrão ao permanecerem calados diante dos ataques de López Obrador ao Judiciário, aos jornalistas, ao modo como usou a Justiça para perseguir opositores ou tachou de inimigos membros da sociedade civil e defensores dos direitos humanos e ataca o sistema eleitoral. Apesar da gravidade desse tipo de deriva autoritária, que se soma ao processo de militarização, os EUA preferem olhar para o outro lado.

O Haiti está mais uma vez em crise e seu governo até pede a intervenção da ONU. Mas várias décadas de ajuda e esforços internacionais se passaram e nada parece funcionar…

O caso do Haiti é talvez o mais dramático e triste de toda a América Latina. Um colapso absoluto de todo o Estado, um controle total das gangues que subjugaram os cidadãos, um número crescente de migrantes que agrava a crise migratória na região e a recente crise de saúde com a disseminação do cólera. A intervenção internacional não foi efetiva apesar do investimento de milhões e milhões de dólares. Pior de tudo, cresceu a percepção de que nada mais pode ser feito no Haiti. Mas não podemos permitir isso. O Haiti deve ser uma prioridade. Os países da região devem unir esforços para recuperar algum senso de institucionalidade que permita uma saída para essa crise.

A China, conhecida por suas constantes violações de direitos humanos e regime antidemocrático, é o principal parceiro comercial da América Latina. Dá a impressão de que quando há dinheiro envolvido, os governos fazem vista grossa…

A falta de atenção dos EUA permitiu que a China tivesse mais acesso à América Latina. Os chineses, em muitos casos, têm sido pragmáticos porque não impõem condições, mas estão dispostos a fazer investimentos e isso é muito conveniente para regimes autoritários que não só não condenam suas gravíssimas violações dos direitos humanos, mas também se sentem muito à vontade com o fato de a China não querer criticá-los. Devemos pedir aos EUA e à Europa que entendam que é essencial ter uma relação ativa com a América Latina baseada na proteção dos direitos humanos e no fortalecimento do Estado de Direito.

O Globo