Professor de Yale acusa Bolsonaro de “fascismo clássico”

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Foto: Eraldo Peres/AP

Comunistas entranhados nas universidades, na mídia e até no ensino básico, com o objetivo de doutrinar a juventude. Incorporada à cartilha da extrema-direita no pós-guerra, a ameaça de uma silenciosa infiltração vermelha voltou a ganhar corpo no discurso conservador após os protestos que culminaram no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Para o professor de filosofia Jason Stanley, da Universidade de Yale, esse ressurgimento não reflete apenas a polarização política no país, mas o uso de métodos fascistas para subjugar instituições democráticas. Tachar adversários políticos indiscriminadamente de comunistas e marxistas é estratégia usada com frequência por políticos de tendências fascistas, adverte o autor do livro “Como funciona o fascismo: a política do ‘nós’ e ‘eles’.”

Teorias conspiratórias — categoria na qual Stanley inclui o chamado “marxismo cultural” — são fundamentais dentro da lógica fascista de pintar opositores como inimigos mortais da nação. Nesse contexto, as liberdades sexuais e os direitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), por exemplo, são apresentados ao público conservador como riscos à existência da própria sociedade. “As liberdades democráticas não apenas permitem que outras pessoas vivam de maneira diferente da sua, mas ameaçam o seu estilo de vida”, explica Stanley, ao comentar um dos pilares da narrativa fascista: o passado mítico no qual imperavam os “valores de família.”

Na opinião do acadêmico, há uma tentativa de grupos neoliberais de igualar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro rotulando ambos de “populistas”. Mas, para o estudioso, Bolsonaro segue o “tipo clássico do fascista latino-americano”. E, ao contrário do que aconteceu no Brasil, onde na visão dele a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) foi essencial para salvaguardar a democracia, nos Estados Unidos a Suprema Corte é uma das maiores ameaças ao regime democrático. Stanley participa no próximo sábado (19) do Festival Confluentes, evento em São Paulo que vai discutir temas relacionados à democracia, à economia e à mídia, além das perspectivas para o país em 2023.

A seguir, os principais pontos da entrevista ao Valor.

Seu livro menciona que a palavra ‘fascista’ adquiriu uma conotação extrema, de um falso alarme. Seria um exagero dizer que líderes populistas com tendências autoritárias são pretensos fascistas? Existe uma distinção entre líderes de extrema-direita e fascistas?

Jason Stanley: Não gosto da palavra populista porque Lula é um populista e ele não é um fascista. Bernie Sanders é um populista mas não um fascista. Chamá-los de populistas é uma maneira de ridicularizá-los […]. O populismo é a solução e não o problema. Populismo é uma palavra terrível. Os neoliberais usam o termo “populista” porque eles querem difamar Lula, dizer: “Bolsonaro e Lula são a mesma coisa. São populistas”. Eu acho que há também líderes de extrema-direita que respeitam a democracia. E líderes da extrema-direita que são puramente libertários ou neoliberais, vamos dizer, mas de caráter autoritário. Acho que é difícil citar exemplos [desses casos]. O fascismo é um tipo de ultranacionalismo patriótico. É uma forma específica de nacionalismo de extrema-direita, de política extrema-direita.

Por que o populismo pode ser visto como uma solução?

Stanley: O populismo genuíno mira as elites econômicas e não as elites intelectuais ou culturais. Diminui o ressentimento que alimenta o fascismo, reduzindo a ansiedade econômica.

Nos Estados Unidos, alguns veículos da Nova Direita já foram acusados de suavizar, por exemplo, o discurso racista ou antissemita de extremistas para torná-lo mais palatável ao grande público. Esse seria um exemplo do que o senhor, no seu livro, chama de “normalização do mito fascista”?

Stanley: É definitivamente parte de um [processo] de normalização. Ser explicitamente racista numa mensagem [ao público] era considerado uma violação das normas quando [Barack] Obama era presidente [dos Estados Unidos]. Eles [extremistas] vêm gradualmente corroendo as regras, acabando com elas, de forma que declarações cada vez mais radicais são consideradas normais.

No Brasil, políticos utilizam uma linguagem rude ou até ofensiva para falar de seus adversários ou para responder perguntas da imprensa…

Stanley: O que você quer dizer quando mostra que não respeita as normas liberais e de civilidade? Ao mostrar que não respeita as regras, as pessoas pensam que você faz isso porque é autêntico, porque você não está preso às boas maneiras. [Elas acreditam que] você deve deve ser autêntico em vez de reconhecerem o que tudo isso realmente significa: só mais uma estratégia para tentar derrubar a civilidade e as boas maneiras para se mostrar como alguém forte.

O subtítulo do seu livro é “A política do ‘nós’ e ‘eles’”. No discurso populista é fundamental esse antagonismo entre a elite e o povo. No fascismo, é importante também criar essa cisão?

Stanley: Todo poder, numa certa medida, gera essa divisão do nós contra eles. Mas no fascismo a ideia é de que existe um inimigo interno: os comunistas, as feministas, [os militantes] LGBT, imigrantes… Não são as pessoas ricas [as elites]. É esse inimigo interno que precisa ser expurgado porque é o inimigo da nação. São realmente os “traidores” da nação. O comunismo é uma política do “nós contra eles” que usa distinções de classe social, como ricos [e pobres]. E isso não é fascismo. Você está apenas dizendo: “Tire o dinheiro das pessoas ricas e então seremos [todos] nós”. Mas no fascismo você diz: “Há algumas pessoas que são fundamentalmente inimigos mortais [da nação].”

No caso do Brasil, extrema-direita e fascismo se confundem?

Stanley: Bolsonaro é o mais próximo que podemos chegar de um tipo clássico de fascista latino-americano. O Brasil teve uma ditadura militar até a metade dos anos 1980. A ditadura militar foi um regime de direita violento, anticomunista e antissindical. O que Bolsonaro está fazendo é o que o seu mentor… Qual o nome dele? Um que morreu recentemente, na Virgínia…

Olavo de Carvalho?

Stanley: Olavo era abertamente fascista em termos ideológicos. […] A política fascista envolve qualificar o inimigo como marxista, comunista. Chamar simples liberais de marxistas e comunistas. Dizer que os movimentos feministas e LGBT destroem o tecido social da nação. Olavo era um ideólogo fascista que falava das liberdades democráticas como algum tipo de ameaça fundamental à nação, fossem elas [liberdades] sexuais, direitos LGBT ou de aborto. […] E, também, agir como se houvesse uma conspiração […] para fazer lavagem cerebral nas crianças por meio do sistema educacional. Os nazistas, por exemplo, disseram que judeus marxistas e comunistas tomaram o sistema educacional, a mídia, a imprensa… E que você precisa de uma reação dura contra isso. E esse é o tipo de dialética que você vê no Olavo: teorias conspiratórias envolvendo o marxismo cultural. Você vê [a extrema-direita] atacando com força [o educador] Paulo Freire, alegando que ele de alguma forma doutrinou a juventude brasileira e [os seus ensinamentos] são usados para destruir o Brasil. […] Essa é a versão pós-Segunda Guerra Mundial da extrema-direita. Você diz que os comunistas estão se infiltrando no sistema educacional, que eles tomaram conta da imprensa… Esse é o tipo de discurso que você tinha durante a ditadura militar e os brasileiros sabiam como evitá-lo. Os brasileiros sabiam que quando você chama seus opositores de marxistas ou comunistas isso se transforma numa ameaça a eles. E eles [extremistas] não fizeram mais isso até, mais ou menos, o período posterior aos protestos que levaram ao impeachment de Dilma [Rousseff]. Então nós começamos a ver esse vocabulário voltando a ser usado novamente. Chamar membros do PT de comunistas e marxistas; atacar Paulo Freire; disseminar teorias da conspiração a respeito do marxismo cultural e como ele estaria dominando a imprensa, as universidades e as escolas. Essa teoria da conspiração do marxismo cultural é parte da política fascista.

Teorias conspiratórias são um elemento relevante dentro do fascismo?

Stanley: São absolutamente fundamentais. […] Você vê ambos, Giorgia Meloni [primeira-ministra da Itália] e Vladimir Putin [presidente da Rússia] dizendo como a ideologia de gênero vai substituir a feminilidade. Esse medo de que valores tradicionais sejam substituídos [por outros]. As liberdades democráticas não estão apenas permitindo que outras pessoas vivam de maneira diferente da sua mas ameaçam o seu estilo de vida.

Essa questão dos “valores familiares” permeia o passado mítico, os “bons tempos” a que você se refere em seu livro como ponto central no discurso fascista?

Stanley: É uma ideia que aparece claramente no [discurso de] Olavo [de Carvalho]. É parte do passado mítico mas também é usada [por Bolsonaro] para falar da ditadura militar. E quando ele diz que as liberdades democráticas ameaçam os valores familiares, essa é a forma como políticos fascistas atraem para o lado deles aqueles que são conservadores pelo ponto de vista social. Eles representam as liberdades democráticas como uma ameaça existencial à maneira de viver fundamentada em pontos de vista socialmente conservadores.

O quão importante é, dentro da dinâmica fascista de tomada do poder, enfraquecer as instituições?

Stanley: O que você [como político fascista] tem de fazer é dominar os tribunais… Você destrói as instituições que são barreiras ao seu pleno exercício do poder. Bolsonaro queria que os militares interviessem em nome dele. E ele queria trocar os juízes do Supremo Tribunal [Federal] que eram um obstáculo no caminho dele. Isso pode ser feito de múltiplas formas. Você pode, por exemplo, remover juízes do Supremo e, como Bolsonaro ganhou [espaço no primeiro turno], ele tem apoio suficiente no Senado e pode, então, tirar juízes da corte, conseguir o impeachment deles. Quando você domina o Judiciário, como nós vimos nos Estados Unidos, esta é a maior vitória. Aí você pode usar as instituições para destruir a si mesmas.

É isso que está acontecendo nos Estados Unidos?

Stanley: Totalmente. A Suprema Corte é a inimiga número um da democracia nos Estados Unidos. É o oposto do Brasil. Em 2011, tivemos a decisão [referente ao caso] Cidadãos Unidos [contra a Comissão Eleitoral Federal] que eliminou toda e qualquer restrição ao financiamento de campanhas [eleitoral]. Temos doações corporativas ilimitadas para campanhas. Depois eles permitiram o redesenho sem qualquer restrição de distritos eleitorais, de forma a manipular resultados em favor de um partido. Por exemplo, 51% dos eleitores de Wisconsin votaram nos Democratas para a câmara dos deputados e o senado estaduais, mas os Republicanos têm quase uma supermaioria nestas casas. Apesar de 51% dos eleitores no Estado terem votado nos Democratas, os Republicanos são quase 70% [dos representantes eleitos]. Nesse tipo de manipulação [“gerrymandering”, em inglês], você muda os distritos. […] Reúne todos os democratas num só distrito. A Hungria está usando esse tipo de manipulação eleitoral.

Qual o peso do tema da corrupção dentro da narrativa fascista?

Stanley: Isso foi algo surpreendente na minha pesquisa: reparei que cada campanha eleitoral fascista é uma campanha anticorrupção não importando o quão corrupto o seja o líder fascista. É muito estranho porque eles seguem a linha de que de alguma forma a própria ideia da democracia é corrupta. Eles dizem que foram de alguma forma escolhidos por Deus ou que são o martelo que vai esmigalhar a corrupção… A ideia é de que as estruturas usuais e confusas da democracia são, por si só, corruptas. E eles representam a força da lei e da ordem, rígida e pura. E isso funciona. Vladimir Putin recorreu a uma campanha anticorrupção. […] Donald Trump se baseou numa campanha anticorrupção em 2016, você se lembra da “Hillary Desonesta”? E ele é o político mais corrupto que os Estados Unidos já tiveram.

A democracia nos Estados Unidos corre risco?

Stanley: Sim, há um movimento social e político [em curso]. O que as pessoas enxergam nos Estados Unidos? Algo que líderes latino-americanos sempre veem: que é possível assumir o controle [absoluto] do governo. Isso é algo que os brasileiros não esquecem porque é muito recente. Mas o que temos aqui é um movimento político e social, o trumpismo. E Trump tentou ele próprio derrubar o governo. Aliás, a Suprema Corte [americana] vai decidir este ano sobre o caso Moore contra Harper, a assim chamada “Teoria da Legislatura Estadual Independente”. Isso significa [na prática] — se houver decisão favorável [da corte] — que não haveria direito individual de votar para presidente e que parlamentares estaduais poderiam escolher o presidente. E esses parlamentares estaduais foram beneficiados pelo redesenho dos distritos eleitorais de acordo com interesses partidários. A maioria deles é de republicanos, mesmo em estados onde o partido deles não tem a maioria dos votos. Essa é a maneira sofisticada de fazer isso [assumir o controle]. Você vai aos tribunais e eles permitem o golpe. E estamos bem adiantados nos Estados Unidos em termos da infraestrutura que permitiria um golpe. O que freou Bolsonaro foi o fato de ele não conseguir substituir ministros [do STF] e líderes militares [de forma] suficientemente rápida para viabilizar um golpe. Mas, no Brasil, [o vice-presidente Hamilton] Mourão é senador [eleito] e os apoiadores de Bolsonaro estão dominando a câmara e o senado. Vocês vão ter muitos juízes que podem viabilizar um golpe. É assim que funciona: você altera as estruturas no sistema que permitem um golpe.

Por que, depois de décadas, o fascismo está ressurgindo na Europa?

Stanley: A “ameaça” cultural representada pela imigração, a mudança cultural, essas são forças que podem ser usadas por fascistas para gerar medo e atrair apoio de pessoas conservadoras do ponto de vista social e daquelas que temem o futuro.

E nos Estados Unidos, essa questão da imigração também pesa?

Stanley: Uma coisa que podemos dizer em relação aos Estados Unidos é nossa dinâmica racial ininterrupta, que é muito importante por aqui. A luta constante contra a brutalidade policial, o movimento Vidas Negras Importam [“Black Lives Matter”, em inglês] e as manifestações políticas regulares dos negros levaram a uma reação forte dos brancos. E nós temos muitos Estados que nunca foram democracias. Muitos Estados do Sul dos Estados Unidos nunca foram democracias. Eles foram Estados dominados por um só partido, governados por regimes brutais encabeçados por partidários da supremacia branca, onde eleitores negros têm muito pouca voz. O Mississipi é 38% negro, mas seus eleitores negros não tem qualquer poder. O que acontece nos Estados Unidos é que […] prendemos um monte de gente, incluindo muitos cidadãos negros. A Flórida, por exemplo, tem um milhão de eleitores em potencial que não podem votar porque foram presos por crimes e isto conta no histórico deles. A Flórida nunca elegeria um republicano se esses eleitores pudessem votar. É a cassação do direito de votar devido a uma condenação criminal.

Do ponto de vista das campanhas políticas, qual a relevância das redes sociais?

Stanley: [As redes sociais] são uma ferramenta importante para todo mundo. É por isso que o Elon Musk está comprando o Twitter [risos]. Em países com leis sobre financiamento de campanhas [políticas], como o Brasil, como mostrou [a jornalista] Patrícia Campos Mello, as pessoas tentam contornar regras de financiamento de campanha usando as redes sociais, pagando por campanhas via WhatsApp, e coisas deste tipo. Os Estados Unidos não têm regras para financiamento de campanha, então não temos isso por aqui. Mas as redes sociais podem ser usadas para espalhar os rumores mais loucos que podem enfraquecer a democracia.

A derrota do presidente Jair Bolsonaro nas últimas eleições pode significar o fim do bolsonarismo?

Stanley: Não, vocês têm muitos candidatos [eleitos que o apoiam]. Os apoiadores dele dominam a câmara e o senado. É uma situação em que eles podem tornar muito difícil para Lula fazer as reformas que fizeram do Brasil uma das mais bem-sucedidas economias no mundo quando ele esteve no poder pela última vez. Eles podem colocar obstáculos no caminho dele e preparar o caminho para o retorno de Bolsonaro ou até pior.

Valor Econômico