Bolsonaro usou cultura em guerra ideológica
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A lógica de guerra cultural, tão citada para explicar a forma de fazer política de Jair Bolsonaro, não se limita à cultura enquanto área do governo, mas tem nela um de seus pilares.
Nos últimos quatro anos, o setor e as instituições ligadas à pasta – que deixou de ser ministério e virou secretaria – passaram por ataques e acusações de desmonte institucional.
Criado em 1985 pelo governo de José Sarney, o ministério foi rebaixado ao status de secretaria especial durante o governo Collor, mas foi nesta gestão que o então secretário especial Sérgio Paulo Rouanet concebeu a lei que depois ganhou seu nome, estruturando uma política de incentivos fiscais na área.
A Cultura voltou a ser posto de primeiro escalão com Itamar Franco. No primeiro dia do governo Bolsonaro, a área voltou a ficar sem ministério específico. Mas sequer ficou vinculada à Presidência: entrou no organograma primeiro da pasta da Cidadania e depois do Ministério do Turismo. Enfraquecer a lei Rouanet o máximo possível passou a ser a principal política de Bolsonaro para o setor.
Em quatro anos, sete secretários passaram pelo órgão, que sofreu com polêmicas e restrições orçamentárias. No setor, fala-se em “desmonte” e a expectativa é de retomada de diálogo e investimentos com a recriação do ministério, que será comandado pela cantora baiana Margareth Menezes a partir de 1º de janeiro.
Levantamento do Movimento Brasileiro Integrado Pela Liberdade de Expressão Artística (Mobile), que reúne seis organizações, detectou quase 300 ataques à cultura nos últimos quatro anos, que se deram de diferentes formas. Eles vão desde o discurso belicoso contra determinados artistas até desmontes institucionais de órgãos ligados à pasta. Consultor da ONG Artigo 19 dentro do Mobile, o gestor cultural Guilherme Varella afirma que alguns casos começaram a chamar atenção ainda em 2016, mas foi sob Bolsonaro que ganharam forma de movimento.
“Os casos começaram a obedecer a uma lógica”, afirma. Os números do levantamento registram uma ocorrência de ataque em 2016, nove em 2017 e mais nove em 2018. Já no primeiro ano de Bolsonaro, há um salto para 72 casos. O pior ano, contudo, foi 2021, sob o comando de Mário Frias: 84 episódios.
De todos os casos abarcados pelo levantamento, a maioria teve como agentes o governo federal; parcelas menores partiram de outros Poderes, como decisões do Judiciário ou projetos de lei no Legislativo. Procurada para comentar as críticas, a Secretaria Especial da Cultura não retornou à demanda do Valor.
Os pesquisadores identificaram uma série de medidas que configuram um desmonte institucional. Órgãos como a Fundação Palmares, a Funarte, o Iphan e a Ancine foram esvaziados de seus sentidos originais. Ao mesmo tempo, instrumentos administrativos como portarias e decretos foram usados para o que se chama de “novas censuras” – formas brandas de impedir a realização de projetos – ou para esvaziar os órgãos.
“Podemos afirmar que existiram alvos preferenciais. Foram os segmentos identitários, que contrariam, na visão dos bolsonaristas, os valores tradicionais. Por isso instituições como a Fundação Palmares se destacam nesse aspecto de inversão do seu papel institucional, republicano”, diz Varella. À frente da Palmares, o jornalista Sérgio Camargo, que é negro, chegou a chamar a militância negra de “escória maldita”.
A gestão também foi marcada pelo vaivém de secretários e pela instabilidade em instituições vinculadas ao governo federal. O primeiro escolhido para chefiar a secretaria foi o jornalista José Henrique Pires. Permaneceu à frente da pasta por sete meses e deixou o cargo após o Ministério da Cidadania suspender edital que havia selecionado séries sobre diversidade de gênero e sexualidade para exibição em TVs públicas. O substituto, o economista Ricardo Braga, deixou a cadeira em dois meses para assumir posto no Ministério da Educação.
Escalado na sequência, o diretor teatral Roberto Alvim foi afastado da secretaria depois de gravar vídeo, em janeiro de 2020, com discurso de inspiração nazista e citação de uma fala de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler. O vídeo despertou reação da comunidade judaica no Brasil e da cúpula do Congresso, provocando a demissão do teatrólogo no mesmo dia.
A sucessora foi a atriz Regina Duarte, que durou dois meses no posto. Ela foi demitida após uma entrevista na CNN Brasil em que minimizou as mortes por covid-19 e a ditadura militar.
Regina sofreu críticas tanto da classe artística como da extrema-direita. A atriz entrou em atrito com o núcleo de adeptos do polemista Olavo de Carvalho, morto neste ano, que não aceitou suas nomeações para órgãos da secretaria. Ela também foi condenada por artistas ao não prestar homenagens a grandes nomes que morreram na sua curta gestão.
Regina foi substituída pelo também ator Mário Frias, denunciado por andar armado e ameaçar funcionários. Ele foi quem permaneceu mais tempo à frente da secretaria. O ator é apontado por artistas e servidores da área cultural como principal responsável pelo que qualificam de “acefalia” de órgãos vinculados ao governo federal, caso da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte), e pelo enfraquecimento da Lei Rouanet. Procurado para comentar as críticas, Frias, deputado federal eleito pelo PL de São Paulo, respondeu por escrito: “Não comento críticas vindas de quem votou em ex-presidiário”.
A Associação de Servidores da Funarte (Asserte) critica o que considera um “desmonte total” do órgão. Vice-presidente da associação, Liriana Carneiro diz que há relatos de pouca liberdade ou diálogo sobre os processos e diretrizes da fundação. Há dois meses, a Funarte sofreu uma reestruturação que, segundo ela, eliminou cargos e dispensou servidores.
“O decreto publicado em 18 de outubro de 2022 implementou a reestruturação de cima para baixo. Pessoas que trabalhavam lá há 20 anos foram descartadas de um dia para o outro porque eliminaram muitos cargos”, diz Liriana, servidora há quase 40 anos que antecipou a aposentadoria após a eleição de Bolsonaro.
Segundo a vice-presidente, a Funarte passou de 400 para cerca de 150 servidores nos últimos dez anos, com um terço deles deixando os cargos desde que Bolsonaro assumiu a presidência. Outro alerta é o encolhimento do orçamento geral, que caiu 33% de 2014 a 2022, passando de R$ 159 milhões para R$ 106 milhões.
“Com certeza a extinção do Ministério da Cultura contribuiu para isso. Quando você trabalha com secretaria, tem menos orçamento e trabalha com outra função dentro do Poder Executivo. Se você é menor, deixa de ter ações e passa a ser um subgrupo”, avalia.
A rubrica para promoção e fomento à cultura, principal atividade-fim da Funarte, tem previsão orçamentária de apenas R$ 5,6 milhões para 2023.
De 2014 a 2022, o montante caiu 80,7%: de mais de R$ 44 milhões, passou para R$ 8,6 milhões. Nos quase dois anos em que ficou à frente da secretaria, Frias fez pressão para que leis de incentivo ao setor fossem barradas. Entre elas a Aldir Blanc e a Paulo Gustavo, criadas para socorrer os artistas e o setor cultural na pandemia, com repasse de R$ 3,8 bilhões a estados e municípios para o financiamento de projetos.
Bolsonaro brecou as propostas, que só foram sancionadas depois de o Congresso Nacional derrubar os vetos presidenciais. Ainda assim, o governo federal editou uma medida provisória para postergar os pagamentos. A medida provisória foi derrubada por decisão da ministra Cármen Lúcia, em novembro, mas Bolsonaro não fez os repasses, até receber uma ordem do Supremo Tribunal Federal.
Ao deixar o cargo para se candidatar a deputado, Frias foi substituído por Hélio Ferraz de Oliveira. Mas em dezembro, no apagar das luzes do atual governo, Jair Bolsonaro nomeou um policial militar para chefiar a secretaria. Capitão da PM na Bahia, André Porciuncula foi secretário de fomento e incentivo na gestão Frias e é conhecido por defender o uso de armas e criticar a Lei Paulo Gustavo.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural (Iphan) também passou por revés com a nomeação de Larissa Rodrigues para presidência, posteriormente afastada por decisão da Justiça Federal por falta de competência para assumir o cargo. O afastamento se deu em um contexto de contrariedade de Bolsonaro em relação ao órgão. Em 2021, o presidente criticou o Iphan por ter paralisado a obra de uma loja da Havan, do empresário Luciano Hang, no Rio Grande do Sul, após objetos de valor arqueológico serem encontrados no local.