Senador experiente diz que PEC de Lula passará

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Foto: André Coelho/Valor

Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem um encontro marcado com o inevitável: a necessidade de aumentar a arrecadação do governo federal – leia-se, aumentar impostos a partir de 2023.

É o que avalia o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), um dos grandes negociadores da política nacional nos últimos anos e que, após 40 anos, pretende se aposentar de cargos públicos – ele seguirá “fazendo política”, diz, mas sem mandatos. Seu discurso de despedida está marcado para o próximo dia 7.

Bezerra se moveu ao longo dos anos sempre na direção para a qual o poder caminhou. Começou no PDS, partido que substituiu a Arena ao fim do regime militar, rumou à esquerda com Lula e Eduardo Campos em Pernambuco, comandou o Ministério da Integração Nacional entre 2011 e 2013 – saiu quando o PSB decidiu que lançaria Campos à Presidência em 2014, plano interrompido pela morte do ex-governador pernambucano em um acidente aéreo durante a campanha – e foi líder dos governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).

Na conversa com o Valor, Bezerra faz um minucioso diagnóstico dos desafios para o novo governo, conta que há uma grande articulação ocorrendo para inserir, na PEC da Transição, um mecanismo para permitir a abertura de recursos necessários tanto para quitar as emendas de relator bloqueadas quanto dar ao governo Bolsonaro caixa para fechar as contas. Ele prevê, para a PEC da Transição, uma abertura fora do teto de gastos por dois anos, de um montante em torno de R$ 125 bilhões, e diz que a nova âncora fiscal só virá para 2024. E avalia que Bolsonaro perdeu a eleição por conta dos episódios violentos envolvendo Roberto Jefferson e Carla Zambelli às vésperas do segundo turno.

A seguir, os melhores momentos da entrevista:

Valor: A PEC da Transição será aprovada?

Fernando Bezerra Coelho: Avançou o entendimento político da necessidade da PEC. A presença de Lula em Brasília essa semana [passada] fez uma grande diferença. Conversou com os presidentes do Congresso e com os partidos que decidiram formar um bloco aqui no Senado: MDB, PSD e União Brasil. Isso significa a reeleição de Rodrigo Pacheco, de Arthur Lira [presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente], e a tranquilidade da obtenção dos votos necessários para aprovar a PEC da Transição. O entendimento entre Pacheco e Lira é para que o texto do Senado seja o texto da Câmara, já acordado. A construção desse texto comum será feita até terça-feira. Se for para dar um chute, a PEC hoje deverá ter entre 55 e 58 votos no Senado.

Valor: Da forma como está??

Bezerra: Não. Criou-se o clima para a aprovação célere. Davi Alcolumbre [presidente da CCJ] deve convocar reunião na terça-feira, para iniciar o debate e dizer que terá um substitutivo para juntar todas as propostas. Apresenta o relatório na quarta-feira, dia 7, e aprova na CCJ e plenário no mesmo dia, mais tardar na quinta, para enviar à Câmara à tarde e eles terem esses oito dias para fazer as formalizações de tramitação e até o dia 15 aprovar, votando o Orçamento na última semana antes do Natal.

Valor: É possível um acordo em relação ao valor e ao prazo do total fora do teto de gastos?

Bezerra: O prazo é mais sensível [na negociação] que o valor. Aqui no Senado, o ambiente é para que a retirada do teto seja de dois anos. Na Câmara, está mais para um ano só. Por isso Ciro Nogueira soltou aquela nota pelo PP [defendendo um ano de retirada do teto], é um movimento para valorizar Arthur Lira. E Lira, muito inteligente, diz então que a proposta da Câmara será a do Senado, sinalizando que pode chegar ao prazo de dois anos. Sobre o valor, não serão os R$ 198 bilhões, longe disso. No Senado, Pacheco tem mais abertura para aceitar um número próximo de R$ 150 bilhões. Na Câmara, algo em torno de R$ 100 bilhões. O que vai sair? Algo ali em torno de R$ 125 bilhões. É a minha aposta.

O que Lula chama de “compromissos sociais” assumidos na eleição dá, no máximo, R$ 90 bilhões”

Valor: Como chegar ao acordo?

Bezerra: É uma PEC de Transição. Se é de transição, ela precisa atender o governo que está entrando, mas também o governo que está saindo. Isso também avançou nas negociações e poderá facilitar a tramitação. Vai ter na PEC instrumentos para permitir a abertura de espaço para resolver o problema [de bloqueio] das RP-9 [emendas de relator] este ano, que não tem espaço orçamentário, e vai se resolver também as necessidades de RP-2 [despesas discricionárias, que o governo pode ou não executar], para que o governo que está saindo possa fechar as suas contas. O número que está se desenhando: de RP-9, R$ 7 bilhões. De RP-2, outros R$ 7 bilhões, para resolver as necessidades do Executivo e fechar as contas. O número deve ficar entre R$ 11 bilhões e R$ 17 bilhões. Isso está sendo politicamente construído e todos estão trabalhando nesta direção.

Valor: O pedido do novo governo é muito alto?

Bezerra: Quando bota na ponta do lápis, o que Lula chama de “compromissos sociais” assumidos na eleição dá, no máximo, R$ 90 bilhões. Mesmo exagerando, ao contar Farmácia Popular, merenda escolar, com folga dá isso. O resto é investimento.

Valor: A mudança na âncora fiscal seria para 2023?

Bezerra: Eles precisarão de tempo. Não vão chegar nos primeiros seis meses e definir. Terão que conhecer o desempenho, a execução orçamentária, o comportamento da receita em 2023. Vão apresentar uma proposta de mudança de âncora fiscal no segundo semestre, para o debate. Aí no primeiro semestre de 2024 se aprovaria o novo arcabouço.

Valor: O Bolsa Família todo fora do teto lhe parece improvável?

Bezerra: O Bolsa Família todo fora do teto não passa, não existe. Tem duas maneiras de fazer essa flexibilização. Tem a sugerida pelo PT, de deixar fora do teto até R$ 198 bilhões por ano; e tem a proposta do Tasso Jereissati [PSDB], que acho mais inteligente, porque de certa forma minimiza a questão do prazo. Ele pega o teto deste ano e bota R$ 80 bilhões a mais. E aí você corrige, pode ser por inflação ou outro índice, um aumento real a depender da trajetória da dívida. Esta proposta é melhor de trabalhar, você poderia chegar a R$ 100 bilhões, que seria o número mágico.

Valor: Qual deve ser o foco do novo governo?

Bezerra: Tenho falado para o pessoal da transição: a maior preocupação do novo governo deve ser a trajetória da inflação, eles conseguirem derrubar a inflação como está projetado, com uma queda da Selic a partir de abril. Mas para isso, essa narrativa do gasto precisa estar coberta. Uma coisa é você ter autorização para gastar, mas de onde vem a receita? Nós fecharemos as contas desse ano com um pequeno superávit, mas praticamente no zero a zero. A receita de 2023 vai diminuir em relação a este ano, não tem receitas extraordinárias como agora. Você só começa a diminuir juros se sinalizar que as receitas estão equilibradas.

Valor: O primeiro ano é decisivo?

Bezerra: É decisivo. Lula tem que acertar na economia. Por isso que acho, à luz da experiência que Lula teve nos dois mandatos dele, que ele vai se concentrar para equilibrar as contas já na partida, porque esse vai ser o sucesso do governo dele. Deixa eu lhe dizer qual é o grande desafio do próximo governo, que ninguém está falando: a isenção de PIS-COFINS sobre combustíveis acaba em 31 de dezembro. Sabe quanto significa isso? R$ 55 bilhões! No dia 1 de janeiro, Lula tem que tomar uma decisão, que não é simpática, porque [se não renovar a isenção] aumenta o preço da gasolina, impacta a inflação. São todas medidas amargas, mas se ele arriar bem as malas ao chegar, pode construir o sucesso dele.

A receita de 2023 vai diminuir em relação a este ano, não tem receitas extraordinárias como agora”
Valor: É possível concluir que o governo terá de aumentar imposto?

Bezerra: Sim, não tem escapatória. Essa agenda vai se impor em fevereiro, se o governo quiser acertar. Ouvi de um nome do PT: por mim, a gente colocava todos esses compromissos sociais já dentro de uma [nova] CPMF. Ou seja, que tem preocupação com receita [na equipe de transição], tem. Isso vai ter que vir.

Valor: Não haverá dificuldade de convencer o Congresso, ainda mais conservador, a aumentar impostos?

Bezerra: Aí eu respondo você de forma diferente: Lula é craque. Lula conseguiu desarmar duas coisas importantes: primeiro, a relação com o setor militar. Botou a transição para funcionar, escolheu o ministro [que deve ser José Múcio Monteiro], está pacificando a relação. Acho que fez um golaço. Segundo: resolveu a governabilidade dele, né? Elegeu Lira, elegeu Rodrigo Pacheco, formou a base, está com tudo na mão pra pedir a PEC da Transição, vai estar com o compromisso com os mais pobres resolvido. Politicamente ele já cravou essa. Em janeiro, todo mundo estará recebendo os R$ 150 a mais, é o Lula, ele chegou, mudou, melhorou minha vida e tal.

Valor: Qual o desafio de Lula na política?

Bezerra: Pela primeira vez na história da redemocratização brasileira, a oposição vai ter poder de mobilização nas ruas. Não tinha mobilização de rua efetiva contra o governo Fernando Henrique Cardoso, contra Lula, tinha mobilização nos sindicatos e tal. Em 2013, foi um fato precursor do que aconteceu em 2018, quando se varreu o establishment com valores já associados à ética, família e segurança. Mas o que quero dizer é que, no Congresso, o bolsonarismo não fará muita diferença porque Lula já operou bem isso, entendeu?

Valor: Lula terá maioria no Congresso?

Bezerra: Ele isolou o bolsonarismo tanto no Senado quanto na Câmara. Eles ficaram muito pequenos. Lula já está falando com o PL [de Valdemar Costa Neto], com o Republicanos, isso já está dado, mas o risco é que essa liderança do presidente Bolsonaro é forte na rua. Isso significa que Lula não tem muita margem de erro. Vai ser um governo que ele tem que acertar logo no primeiro ano. Porque se houver um repique inflacionário, meu amigo, ele vai ter dificuldade.

Valor: Quais serão as forças dominantes do Congresso?

Bezerra: Acho que vão surgir três grandes blocos no Congresso: o bloco da direita, que, de fato, está fortalecida, o bloco da centro-direita, que é ainda predominante, e uma centro-esquerda. O charme de Lula vai ser manter a centro-direita do lado dele, que é o União Brasil, PSD, MDB. É só ter cuidado porque qualquer dificuldade maior, qualquer erro na questão ética e política, vai levar à mobilização de rua. É o mesmo que aconteceu nos Estados Unidos após a vitória do Biden. O “trumpismo” não foi para casa, continua mobilizado.

Valor: Lula terá novamente um cenário internacional favorável?

Bezerra: Vai. Do ponto de vista político, terá força, uma recepção mais fluida com Alemanha, EUA, com a China. O ambiente internacional é mais favorável, a pauta ambiental, a reinserção do Brasil no diálogo internacional, outros países com problemas. Esse pessoal vai vir para cá, vai pegar o dinheiro e botar aqui no Brasil. Vai chegar muita grana e o Brasil tem a chance de ter quatro anos de crescimento muito forte. Não dá é para fazer besteira na economia. O governo que está saindo, é preciso fazer justiça, não é essa essa terra arrasada que estão falando. As contas estão arrumadas, reservas, inflação, geração de emprego.

Valor: A reforma tributária pode prosperar de forma neutra?

Bezerra: Não, não pode ser neutra. Ninguém faz reforma tributária para arrecadar menos, né? Vamos falar o português claro. Você faz para poder simplificar, racionalizar, mas a reforma tributária é melhorar a possibilidade de arrecadação, mesmo que você diminua a carga. Houve redução de carga fiscal [no último ano]. Vamos lá: o ICMS sobre combustível, por exemplo, reduziu. Houve perda pros Estados? Houve, mas não foi essa perda que se falava. Tinha um grupo de senadores, por exemplo, querendo botar nessa PEC da Transição uma compensação para os Estados que perderam com ICMS. E o Carlos Portinho, líder do governo, disse: ‘para o Rio de Janeiro, isso não interessa. Nós aumentamos a arrecadação’. Então tem espaço para diminuir a carga. A reforma da PEC 110 é um caminho. Óbvio que tem que aprimorar com a visão do novo governo.

Valor: Qual o balanço de sua relação com o Palácio do Planalto como líder na gestão Bolsonaro?

Bezerra: Eu diria que o governo do presidente Bolsonaro acertou muito na sua agenda econômica. Não fez tudo que poderia fazer, como, por exemplo, a reforma tributária. De fato, ela não andou porque faltou empenho por parte do governo. Mas houve muitos avanços, começando pela reforma da Previdência. Depois os vários marcos regulatórios que foram aprovados e de fato ampliaram o investimento no Brasil. A taxa de investimento do Brasil está em torno de 19% do PIB. Se você pegar lá o que é investimento público dá 0,4%, o resto é privado. O PT quer aumentar o investimento público. Nenhum problema, mas tem que saber como aumentar porque se aumenta o investimento público gastando sem responsabilidade, você aumenta a taxa de juros, e o investimento privado cai.

Valor: O novo governo diz que o cenário é de terra arrasada.

Bezerra: As contas macroeconômicas do Brasil estão muito boas, muito longe do que se colocou na campanha. Não estou querendo fazer aqui louvação a Paulo Guedes. Mas tem que reconhecer o trabalho que foi feito. A razão para o insucesso [nas urnas] não é a economia. Foram outras razões. A posição do presidente em relação ao enfrentamento da pandemia marcou. O fato de termos tomado uma posição [de negação] em relação à vacina, isolamento social, foram posturas que se mostraram, digamos, não muito adequadas. Acho que esse tipo de atitude não foi legal. Agora, o governo investiu muito na pandemia, viabilizou uma PEC que permitiu que nenhum dos Estados quebrassem. Mas ele errou na condução.

Valor: O senhor avisou Bolsonaro desses erros?

Bezerra: Eu, como líder do governo, tive que votar aqui no Congresso uma moção a favor das políticas de isolamento, isso foi um voto contra ele. Como também tive que votar contra ele no negócio das fake news [projeto de combate a notícias falsas, em 2020], mesmo como líder do governo dele. No dia da votação, estou chegando no Palácio do Planalto e vou cumprimentar o presidente. Um colaborador dele do lado, que eu não vou falar o nome, diz: ‘presidente, olha aí o seu líder que está votando lá contra a gente’. Ele, Bolsonaro, olha pra mim e diz: ‘e aí, Fernando, como é que foi isso?’. Eu falei: ‘nisso [fake news], eu sou contra o senhor mesmo. Eu votei contra’. Ele olhou e respondeu: ‘você deve saber o que está fazendo’.

Valor: A postura dele diante do Congresso e do STF atrapalhou?

Bezerra: Com certeza. Mas vamos fazer um parênteses: existe um crescimento da direita ideológica e radical no mundo inteiro. Veja os Estados Unidos. Na eleição legislativa agora, o Partido Republicano ganha a Câmara com 221 deputados. Sabe quantos deputados se elegeram na tese de que a eleição do Joe Biden foi fraudada? Em torno de 160, dentro do Partido Republicano. Aí quando você se volta para o bolsonarismo, se for fazer um correlato aqui, você não tem 100 deputados no Congresso, de um total de 513, que acreditam nessas coisas. É grande, claro, 100 deputados é muita gente, mas eu estou falando que não é só aqui, isso está nos EUA, na Itália, na Suécia, na Alemanha.

Valor: Como o senhor analisa a derrota do Bolsonaro nas urnas?

Bezerra: O que a gente falava o tempo todo para o Bolsonaro: esse eleitor da direita radical já vota nele, ele tinha que fazer um aceno para a classe média. Se você me perguntar como Bolsonaro perdeu a eleição, eu digo com sinceridade que acho que foram dois fatos: Roberto Jefferson e Carla Zambelli [que provocaram a derrota]. Uma deputada federal saiu com arma em punho no meio dos Jardins, em São Paulo. É uma maluquice. Isso assusta.

Valor: Como analisa a postura de Bolsonaro neste momento?

Bezerra: O comportamento de Bolsonaro de se isolar e não reconhecer a derrota não ajuda em nada. Não pode trabalhar com a negação do resultado eleitoral. Ele tem que aceitar.

Valor Econômico