Bolsonaro legou a Lula 60 mil processos da LAI

Destaque, Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Montagem sobre fotos de Cristiano Mariz e Sergio Lima/AFP

A promessa de rever sigilos centenários impostos pela gestão anterior não é o único desafio do governo Lula no que diz respeito à Lei de Acesso à Informação (LAI). Além de transformar a ferramenta de transparência em subterfúgio para esconder dados considerados sensíveis por Bolsonaro e seus aliados, o ex-presidente deixou para o sucessor um quadro de disparada nos pedidos via LAI negados e de retração generalizada nos retornos positivos. A Controladoria-Geral da União (CGU), a quem cabe fiscalizar o cumprimento da lei em âmbito federal, ainda estuda como lidar com o problema, que inclui um passivo de cerca de 60 mil solicitações sem resposta.

— Ficou claro que saímos de um governo que não tinha compromisso algum com transparência — avalia Vânia Vieira, coordenadora de um dos grupos de transição e hoje secretária-executiva da CGU, abaixo apenas do novo controlador-geral da União, o advogado Vinícius Marques de Carvalho, na hierarquia do órgão.

Um levantamento feito pelo GLOBO no painel da CGU com estatísticas sobre a LAI mostra que a negativa imediata aos pedidos de acesso chegou a mais do que dobrar sob Bolsonaro, diante do cenário anterior. Foram analisados dados referentes aos cinco ministérios de maior orçamento (Educação, Saúde, Economia, Defesa e Ciência e Tecnologia), além da Secretaria de Governo, vinculada diretamente à Presidência da República e extinta após Lula assumir.

Em todas as pastas, o percentual de pedidos com status “acesso concedido” foi menor entre 2019 e 2022, com Bolsonaro, do que de 2012 — quando a LAI passou a valer — a 2019, em meio às gestões de Dilma e Temer. A maior diferença ocorreu na Defesa, onde as respostas positivas caíram de 69% para 55,8%. Já a recordista na alta de recusas foi a pasta da Educação, na qual o índice mais do que dobrou, indo de 2,28% para 5,78%.

— Ao não cumprir a máxima definida pela LAI, que é a da transparência como regra, a gestão Bolsonaro deu sinais para que outros órgãos da administração federal também restringissem a concessão de dados públicos — critica Maria Dominguez, coordenadora do Programa de Integridade e Governança Pública da Transparência Internacional-Brasil.

A LAI prevê a “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”. O não fornecimento do que foi solicitado, portanto, só deve ocorrer em casos específicos, como quando há informações pessoais. Embora a regra já estivesse prevista, o surgimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vigor desde 2020, passou a servir de justificativa para recusar pedidos — mesmo aqueles que não envolvam, na prática, nenhum conteúdo do tipo.

— A regra do estado sempre foi proteger a informação do escrutínio público, e a discussão legítima e necessária sobre proteger os dados dos cidadãos acaba virando um pretexto. E aí tanto pode ser algo intencional quanto um certo conservadorismo burocrático de servidores inseguros ao interpretar a lei. É preciso um esforço da administração pública, bem como uma intenção política, para capacitar e orientar esses funcionários — diz a pesquisadora Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil.

O quadro envolvendo a LAI e a LGPD levou a CGU a publicar, em março de 2022, um documento no qual frisa que as duas leis “são sistematicamente compatíveis”. O texto reforça que eventuais recusas aos pedidos devem obedecer aos critérios descritos na LAI.

A fragilização da LAI sob Bolsonaro não se resumiu a pedidos negados. Já no primeiro mês da gestão, um decreto permitiu que assessores de menor relevância hierárquica classificassem informações como secretas e ultrassecretas — o grau máximo de sigilo. A medida acabou derrubada na Câmara. Quinze meses depois, coube ao STF barrar a tentativa do governo de ignorar os prazos de resposta da LAI durante a pandemia da Covid-19.

Com a legislação inalterada, surgiram outras rotas de fuga. Um levantamento da Transparência Brasil — revelado pelo “UOL” nesta segunda-feira — indicou que o governo Bolsonaro respondeu, entre 2015 e 2022, por 80% dos conteúdos colocados em “sigilo de cem anos”.

Segundo a ONG, de um total de 1.108 usos desse pretexto pela gestão anterior, mais de um terço deu-se em situações indevidas. A revisão dos sigilos, prometida por Lula na campanha, começou com a divulgação, na semana passada, da lista de visitas à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro no Palácio da Alvorada.

Outro relatório da Transparência Brasil mostrou que a contração no acesso a dados públicos é ainda maior do que a auferida oficialmente: 20% dos pedidos cujas respostas foram classificadas como “acesso concedido”, nos últimos dois anos, não foram de fato atendidos. O governo federal tratou dessa maneira, por exemplo, centenas de solicitações sobre fraudes nas eleições de 2018. Bolsonaro afirmou, diversas vezes, ter provas acerca da suposta farsa — que jamais foram apresentadas, seja publicamente ou via LAI.

— Usamos um algoritmo para avaliar 48 mil pedidos feitos a órgãos federais e, assim, detectamos essa “pedalada” na estatística. Como é o próprio órgão que atribui o status da resposta, abre espaço para distorção — explica Marina Iemini Atoji, supervisora do estudo e diretora de programas da ONG: — A verdade é que foi um período sofrível no quesito transparência. Passamos desde o primeiro momento do governo até o último com tentativas de dilapidar a LAI e de sepultar políticas do gênero.

Um dos diagnósticos fornecidos pela equipe de transição chefiada por Vânia Vieira foi o de que a fiscalização pela CGU foi fragilizada, o que comprometeu a eficácia da LAI. A Controladoria planeja, agora, usar mecanismos de inteligência artificial para identificar gargalos e, assim, atuar diretamente junto aos órgãos com maior índice de negativas. Outra preocupação, segundo a secretária-executiva, é detectar a frequência de pedidos por dados que já deveriam estar disponíveis em plataformas abertas — a chamada transparência ativa, também fragilizada com Bolsonaro na visão de especialistas.

— Nossa proposta é investir na ação proativa, que envolve capacitação e debate com a sociedade civil, algo que foi fundamental inclusive para a elaboração da LAI — promete Vânia.

O Globo