Militares querem que Lula “vire a página” do golpismo de militares e de Pazuello

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Foto: Wilton Junior/Estadão – 12/01/2023

A desconfiança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a atuação das Forças Armadas é vista na caserna como um pedido de divórcio litigioso.

Embora a relação entre Lula, o PT e os militares nunca tenha sido boa, deteriorando-se ainda mais no governo de Dilma Rousseff, a invasão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF), no domingo, 8, fez com que o estremecimento por pouco não virasse uma ruptura.

Em conversas reservadas, conselheiros de Lula com trânsito nas Forças Armadas dizem que a hora é de virar a página, e não de promover uma “caça às bruxas”.

Argumentam que isso não significa o arquivamento de punições.

Ao contrário: na visão de ex-ministros da Defesa, como Nelson Jobim, Raul Jungmann e Aldo Rebello, as penas para quem cometeu crimes precisam ser duras e exemplares, mas o discurso de Lula deve promover o distensionamento.

A pressão da cúpula do PT para Lula demitir o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, contraria as Forças Armadas, que hoje o veem como único nome capaz de apaziguar a relação dos militares com o Planalto.

Se antes a caserna encarava o político Múcio com pé atrás, hoje ele virou uma espécie de fiador da estabilidade. A portas fechadas, oficiais dizem que a eventual saída de Múcio pode agravar a crise.

Três generais ouvidos pelo Estadão, sob a condição de anonimato, também mostraram preocupação com a insistência do PT em mudar o currículo das academias militares para introduzir ali temas referentes a direitos humanos.

Além disso, o partido quer que a expressão “revolução de 1964″ seja substituída por “golpe” no material escolar.

As Forças Armadas não aceitam, ainda, a criação de uma moeda comum do Mercosul. A discussão já provocou ruídos. O governo alega que a ideia não diz respeito à adoção de uma cédula única, como o euro. As conversas giram em torno da possibilidade de se estabelecer uma moeda comum, que seria usada em negociações comerciais entre integrantes do bloco sul-americano. Mesmo assim, militares acham que a proposta fere a soberania nacional.

O sigilo do caso Pazuello
As queixas não param aí. Há um mal-estar na caserna com o possível levantamento de sigilo do processo administrativo aberto pelo Exército contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.

A Controladoria Geral da União (CGU) deve determinar a divulgação, na íntegra, do processo que apurou a participação de Pazuello – hoje deputado federal eleito – em ato político no Rio, em 2021.

A tendência do governo de autorizar a abertura desse sigilo é encarada pelas Forças Armadas como sinal de que existe um “terceiro turno” em vigor, com consequências imprevisíveis para o País. “Pelo amor de Deus, acabou a eleição de 2022. Entendam definitivamente isso”, pediu nesta sexta-feira, 13, o ministro da Justiça, Flávio Dino, mandando recado para radicais que não aceitam o resultado das urnas.

Na prática, desde que Dilma abriu a Comissão da Verdade, em 2011, para investigar abusos cometidos contra direitos humanos na ditadura, o relacionamento dos militares com o PT parece caminhar para um acerto de contas. Agora, o retorno da presidente cassada em cerimônias do novo governo é outro motivo de desconforto entre oficiais de alta patente, que temem sua influência sobre Lula.

No último dia 2, por exemplo, Dilma discursou na posse do advogado-geral da União, Jorge Messias, no Planalto. Em 2016, quando era subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, Messias ganhou notoriedade após o então juiz Sérgio Moro, atualmente senador eleito, tirar o sigilo de uma interceptação telefônica que o citava. Na conversa grampeada, Dilma dizia a Lula que “Bessias” estava levando a ele o termo de posse na Casa Civil, para assinar em caso de necessidade. O áudio levou o ministro do Supremo Gilmar Mendes a suspender a nomeação de Lula. Pouco tempo depois, Dilma sofreu impeachment.

Passaram-se seis anos desde então, mas a relação de Lula e o PT com as Forças Armadas dá cada vez mais sinais de rompimento. O endurecimento do presidente com os militares, após os atos de vandalismo do domingo, foi comemorado pela cúpula do partido e visto com apreensãona caserna. “As Forças Armadas não são poder moderador, como pensam que são”, disse Lula em café da manhã com jornalistas, nesta quinta-feira, 12. Sem contemporizar, o presidente admitiu não querer a seu lado nem mesmo ajudantes-de-ordem militares, por absoluta falta de confiança.

Além disso, dirigentes do PT não param de “fritar” Múcio. Alegam que ele jamais poderia ter chamado os acampamentos de bolsonaristas em frente aos quartéis de “democráticos” nem dito possuir parentes naqueles protestos. Ali ficou evidente a cisão dentro do governo. Para Flávio Dino, as aglomerações diante dos Q.Gs eram “incubadoras de terroristas”.

Na avaliação de Lula, o Exército agiu apenas para proteger militares da reserva e suas famílias, que se instalaram diante do Q.G de Brasília, pedindo intervenção militar. Em novembro do ano passado, a filha do general Eduardo Villas-Bôas, ex-comandante do Exército, chegou a postar nas redes sociais uma foto da mãe, Maria Aparecida, naquele acampamento.

A minuta do golpe na prateleira
Lula não tem dúvida de que havia um golpe em curso e já avisou que irá “até o fim” das investigações, com o objetivo de descobrir quem estava por trás da ofensiva para tomar o poder.

A minuta de um decreto para Bolsonaro instaurar estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e reverter o resultado das eleições serviu para respaldar a suspeita do governo. A Polícia Federal apreendeu o que foi batizado como “minuta do golpe” nesta quinta-feira, na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.

O presidente está convencido de que militares facilitaram a entrada de vândalos no Planalto e foram coniventes com a depredação na Praça dos Três Poderes. Com todos sob desconfiança, o clima ainda é de tensão e o papel de Múcio tem sido descrito como o de “um algodão entre cristais”

Um general contou ao Estadão, sob a condição de anonimato, que, após ser anunciado como ministro, Múcio somente conseguiu ser recebido pelos comandantes do Exército e da Aeronáutica depois de 15 dias. Os encontros só ocorreram após interferência de Bolsonaro, que telefonou para os subordinados e disse que o ex-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) era “gente boa”.

Bolsonaro conhece Múcio desde que os dois eram deputados federais. Sempre gostou dele, tanto que mais de uma vez o convidou para ser ministro de qualquer pasta, a escolher. Múcio nunca aceitou.

Após a vitória de Lula, os comandantes das três Forças, indicados por Bolsonaro, queriam antecipar a saída dos cargos para 23 de dezembro. O gesto de hostilidade tinha o objetivo de não prestar continência ao petista, em 1.º de janeiro deste ano.

Foi Múcio que conseguiu demovê-los da ideia, depois de conversar com o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e também com todos os comandantes, menos com o da Marinha, Almir Garnier. O almirante não só não o recebeu como não participou da tradicional cerimônia de passagem de comando da Força.

Estadão