Plano dos golpistas era que Lula convocasse GLO

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Foto: Claudio Belli/Valor

Professor da Ufscar e autor de livros sobre os militares e a política brasileira, João Roberto Martins Filho define como um jogo de xadrez a relação que o presidente Lula terá que manter com as Forças Armadas. Sentencia, no entanto, que não adianta o petista se iludir: “Os militares não gostam dele, não vão gostar nunca”, diz. Martins afirma que operações militares empreendidas nos primeiros governos do PT, como a incursão no Haiti, empoderaram as Forças, que ficam mais afeitas ao poder a cada aplicação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) – e, por isso, o governo acertou ao não decretar a medida no 8 de janeiro. Lula, observa Martins, também soube aproveitar o momento para avançar nas críticas aos militares, que ficaram nas cordas. Veja a seguir os principais trechos da entrevista ao Valor.

Valor: O ministro Múcio e o governo agiram mal ao não perceber o tamanho do problema?

Bolsonarismo criou um ato gravíssimo para levar Lula a declarar GLO. Lula começaria o governo enfraquecido”

João Roberto Martins Filho: Precisamos voltar um pouquinho atrás. Até novembro não havia aparecido o nome do Múcio. Sabemos que o Lula resolveu suspender o grupo de trabalho da Defesa e apostou no nome do Múcio. Surgiu com papel definido, de apaziguar a área militar, e realmente foi possível a passagem de comando. Mas ele vem, exagera na moderação, fala que tem parentes militares etc. E, quando passa disfarçado pelo QG do Exército na manhã do 8 de janeiro, percebe que o negócio fugiria do controle. O desastre já estava pronto. Lula, que é enxadrista, fez dois movimentos recentes: prestigiou o Múcio, mas ao mesmo tempo fez ataques à participação das Forças Armadas no 8 de janeiro.

Valor: Essas falas sobre as Forças são uma aposta arriscada do presidente?

Martins: Acho que o Lula avaliou que já podia avançar. Avançou na quinta-feira ao dizer que não existe poder morador, o que é um dogma para os militares. Ele fez uma avaliação de que era hora de falar. Provavelmente Lula já sabia de vídeos que foram revelados depois daquelas declarações. As Forças Armadas também deviam saber, então não podiam responder.

Valor: E como fica a relação com os militares nos próximos anos?

Martins: Acho que vai ser um jogo de xadrez no qual Lula vai ter que ser muito hábil para avançar às vezes e manter o jogo parado em outros momentos. Nesse tipo de jogo, não pode anunciar quais vão ser as próximas jogadas. Vai ter que fazer um pouco o que os militares são especialistas em fazer: não anunciar as intenções. Vai estar sempre jogando um jogo muito poderoso, porque não sabemos o que pode transbordar o caldo. No momento, eles estão na defensiva. Quem está na ofensiva é o Lula.

Valor: Episódios recentes tendem a abalar a boa imagem das Forças na população?

Martins: Há uns três anos essa avaliação positiva caiu um pouco. Eles são muito preocupados com imagem, o que faz a gente pensar que cometeram um erro nessa associação direta a Bolsonaro. Estão com a imagem bem abalada, estão com a dor de ter botado a mão na água fervente. Há de se supor que está acontecendo um debate lá dentro sobre sair de cena.

Valor: Como tirá-los da política?

Martins: Dependemos um pouco da habilidade do Lula para fazer eles próprios perceberem que, do jeito que a coisa está indo, estão perdendo. Evidente que, se o governo Lula um dia entrar em crise, eles aparecem de novo.

Valor: Como avalia o antipetismo na caserna?

Martins: Isso é algo que eles deviam ter controlado, esse sentimento antipetista. Certa vez, Lula fez um discurso em que falou dos militares, disse que sempre os tratou muito bem. Naquela época, dei uma entrevista dizendo que não adiantava Lula se iludir. Os militares não gostam dele, não vão gostar nunca. Então é preciso tomar cuidado para não demonstrar fraqueza. E Lula parece ter entendido isso, mudou o tom.

Valor: Nos primeiros mandatos, Lula empoderou os militares?

Martins: Houve naquela época um discurso muito forte das Forças Armadas enquanto instrumento de desenvolvimento nacional. O ministro Mangabeira Unger atuava com o ministro Nelson Jobim nesse sentido. Dentro dessa visão, mandam as Forças para o Haiti com o discurso de dar uma destinação profissional aos militares. O que aconteceu na realidade? Foram lá, usaram um equipamento moderníssimo e acharam que poderia aplicar aquilo nas favelas do Rio de Janeiro. Trouxeram isso para a utilização de GLOs, que cresceram no governo Dilma. Essas coisas o Lula percebeu com clareza ao não decretar GLO no 8 de janeiro. Falam que quando esteve preso Lula andou lendo sobre o tema. Uma coisa é muito clara: cada operação de GLO empodera os militares. O movimento bolsonarista resolveu criar um ato gravíssimo que levasse o Lula a declarar GLO. Lula já começaria o governo enfraquecido.

Valor: Tuíte do general Villas Bôas sobre Lula marcou o início da politização pública das Forças?

Martins: É uma questão-chave, mas o problema é o seguinte: quando os militares aparecem na política à luz do dia, foi precedido por anos de conspiração e articulação que a gente não vê. O tuíte é de abril de 2018, mas cinco anos antes já tinham tomado a decisão de que não deveriam se omitir na luta contra o PT, quando se criou a Comissão da Verdade. E quem começa a aparecer? O Mourão.

Valor: O que pode ser feito de reformas para ter mais controle civil?

Martins: Em primeiro lugar, tirar os milhares de militares que ganharam acréscimo salarial trabalhando no governo. Acho que, com a notícia de que 43 que cuidavam do Alvorada e da Granja do Torto foram exonerados, a coisa está indo por aí. Conforme o governo for identificando as áreas com maior concentração de militares sem justificativa, acho que vai haver mais demissões. Depois, nomear para a Defesa um ministro civil que aja com autoridade. E o que ainda estamos longe de conseguir é que as escolas de formação sejam comandadas por civis, o que acontece em muitos casos na Espanha e na França. No momento, os militares estão arredios. Querem manter tudo: não querem que se ponha a mão na educação militar nem nas promoções, querem manter os grandes investimentos em projetos. Mas o desastre do dia 8 mudou tudo, não sabemos muito bem o que está acontecendo dentro das Forças.

Valor Econômico