Agência contra fake news divide especialistas

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Foto: Edilson Dantas

Defendida pelo relator do PL das Fake News, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB), e pesquisadores do tema ouvidos pelo GLOBO, a inclusão de um órgão regulador na proposta que cria novas obrigações para as plataformas digitais, com o objetivo de supervisionar regras e aplicar penalidades previstas no projeto, gera um impasse entre Executivo e Legislativo e ainda depende de uma costura política com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — às vésperas da entrega das contribuições da atual gestão ao texto, prevista para a próxima semana. O governo debate se deve existir um órgão regulador e seu modelo: se será criado uma nova estrutura ou se suas atribuições devem ser incorporadas a uma já existente.

Em evento na FGV no início da semana, o ministro da Justiça, Flávio Dino, ressaltou que o tema ainda não tem consenso. A discussão mobiliza tanto o Ministério da Justiça quanto a Secom. A posição do relator, Orlando Silva, é que a existência de um órgão fiscalizador em paralelo ao modelo de autorregulação, em que as próprias plataformas estabelecem códigos de condutas e regras, é imprescindível.

— É inimaginável, se todos falamos em regulação, que não haja um órgão regulador, que possa aplicar penas previstas, inclusive, no projeto, como advertência, multa, suspensão e até bloqueio dos serviços. Há que se ter um mecanismo, um órgão propriamente criado para isso ou um órgão que receba as atribuições regulatórias e devidas competências, para que se possa fiscalizar e fazer funcionar a lei — disse o deputado no mesmo seminário.

O texto atual do PL não prevê uma estrutura nesses moldes. A criação de um novo órgão por iniciativa do Congresso, sem partir do governo federal, esbarraria em uma trava jurídica. Se estabelecer a nova agência, o que envolve mais despesas e remanejamento de cargos, por exemplo, a proposta legislativa seria inconstitucional por avançar em uma competência do Executivo. A alternativa é o governo Lula apresentar um projeto para ser apensado ao PL das Fake News ou criar o novo órgão futuramente por medida provisória. Ambas as medidas dependem de um compromisso da atual gestão federal.

Um impasse semelhante ocorreu em 2018, com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), responsável por normatizar e fiscalizar a aplicação da lei de proteção de dados pessoais. Na época, o ex-presidente Michel Temer sancionou a lei, mas vetou a agência reguladora com base na mesma justificativa de se tratar de competência do Executivo. O órgão só foi criado por Temer posteriormente por meio de uma medida provisória.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO avaliam que a ampliação de regras no projeto, como a inclusão de punições às big techs para violações da Lei do Estado Democrático e de direitos da criança e do adolescente com exigência de relatórios de transparência, como quer o governo, demanda um fiscalizador e que, sem um órgão regulador, a tarefa de monitoramento da moderação feita pelas redes caberia ao Judiciário, que tende a não atender às demandas na velocidade necessária — e pode ter interpretações difusas a depender do juiz. Também apontam que agências e órgãos já existentes não seriam adequados para a atribuição por não terem expertise no tema ou por não serem independentes.

Entre as possibilidades de estruturas já existentes que poderiam ficar com a tarefa, estão, de um lado, a Anatel e a ANPD — ambas independentes, mas sem corpo técnico especializado em debates como a moderação de conteúdos em plataformas — e, do outro, a Secretaria Nacional do Consumidor, ligada ao Ministério da Justiça, que tem se debruçado sobre como as redes lidam com os direitos da criança e do adolescente, mas é diretamente ligada ao governo, o que poderia gerar risco de uma intervenção estatal nas redes.

No caso da ANPD, também pesa contra sua escolha o fato de ser hoje presidida e formada por militares, indicados por Jair Bolsonaro (PL), o que não agradaria ao governo Lula. Outra opção é o Comitê Gestor da Internet, estrutura multissetorial que não tem hoje atribuição fiscalizadora e é formada principalmente por empresas privadas.

O GLOBO apurou que, inicialmente, a pasta da Justiça defendeu que a atribuição deveria ficar com a Secretaria Nacional do Consumidor. Esta semana, porém, Dino afirmou que o órgão regulador deve ser independente e contar com participação da sociedade civil. Ele citou a necessidade de ser uma estrutura com “leveza”.

— Não pode ser a criação de um novo aparato burocrático pesado, de difícil manejo, porque ele se choca contra a própria lógica da internet — declarou.

Na União Europeia, o Digital Services Act (DSA), regulação que tem sido citada como referência para o debate no Brasil, estabelece uma estrutura para fazer a supervisão da aplicação da lei, os chamados “coordenadores dos serviços digitas”. Cada país do bloco deve designar o seu até fevereiro de 2024 e eles atuarão em cooperação entre si. Pelo texto, os Estados-membros também podem atribuir determinadas funções a outras autoridades competentes, se desejarem.

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A legislação determina que os coordenadores devem ter autonomia e serem “livres de qualquer influência externa, direta ou indireta, e não podem procurar nem aceitar instruções de qualquer outra autoridade pública ou de qualquer entidade privada”.

Advogado e diretor do InternetLab, Francisco Brito Cruz avalia que é necessária a criação de um novo órgão com corpo de técnicos especializados e com contenções à censura, se o objetivo é expandir o PL das Fake News e criar obrigações mais detalhadas:

— Tem que ser um órgão independente e não pode funcionar como polícia de conteúdo. O impacto em conteúdo não pode ser no caso a caso, sem ser do ponto de vista sistêmico, e tem que ser feito com um procedimento que todo mundo pactue. Não dá para aproveitar as estruturas existentes. Isso vai colocar questões delicadas possivelmente na mão de entidades que não são independentes, ou dominadas por setores econômicos e sem expertise no campo.

Integrante da Coalizão Direitos na Rede e do Comitê Gestor da Internet, Bia Barbosa também avalia que há necessidade de um órgão regulador independente, com participação multissetorial, para que a legislação seja implementada com os resultados esperados, especialmente porque o modelo de regulação hoje discutido passa pela análise de conteúdo. A pesquisadora afirma que há condições de estabelecer uma autoridade enxuta com modelo parecido com o da ANPD.

— É preciso um órgão regulador independente com condição de fazer um acompanhamento da implementação das novas normas. Sem o órgão, qualquer avaliação sobre erros e abusos na remoção de conteúdos feitos pelas plataformas vai depender, em última instância, do Judiciário, que não vai dar conta do volume enorme de conteúdos que circulam nas redes, na velocidade necessária. — diz Barbosa. — Na outra ponta, se a fiscalização ficar com um órgão do Executivo, violaria padrões internacionais de garantia da liberdade de expressão, porque daria para o governo de plantão a definição do conteúdo que pode circular ou não.

O Globo