Violência no RN mostra fracasso da violência policial

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Foto: Cristiano Mariz/O Globo

De tempos em tempos, o crime organizado produz um espetáculo de violência e selvageria que nos lembra da pior maneira possível de uma de nossas mais graves lacunas, que nenhum governo foi capaz de sanar: a falta de uma política integrada de segurança pública, que submete os brasileiros à constante sensação de vulnerabilidade.

Nos últimos dias, o Rio Grande do Norte vem sofrendo com ataques a ônibus, prédios públicos e lojas que resultaram em três mortos e 43 presos. Para tentar conter a desordem, a governadora Fátima Bezerra (PT) recorreu ao governo federal, que enviou a Força Nacional e decretou intervenção no sistema penitenciário do estado.

Pelo que se sabe até agora, os ataques têm relação com as péssimas condições nos presídios locais, com denúncias de tortura, superlotação e de comida estragada.

Em 2021, o Amazonas foi palco de crise semelhante, que também terminou com a chegada da Força Nacional. Em 2019, tinha acontecido no Ceará. Rebeliões nas penitenciárias de Pedrinhas, no Maranhão, e de Alcaçuz, no mesmo Rio Grande do Norte, já haviam legado à memória nacional imagens tenebrosas de presos decapitados e incinerados durante rebeliões.

Embora cada caso tenha um motivo particular, todos começaram com o “salve” de uma facção criminosa com ramificações nos presídios locais. Em todos houve uma resposta improvisada — como esparadrapos que cobrem as feridas, mas não curam o tecido doente.

O esparadrapo de Jair Bolsonaro foi a liberalização do acesso às armas, com a tentativa de implantar um “excludente de ilicitude” que, na prática, também servia como um “liberou geral” à violência policial. Como se vê, a política do tiro, porrada e bomba não fez os criminosos desaparecer, não reduziu o crime organizado, nem ajudou a impedir novos ataques e rebeliões.

Quando Bolsonaro assumiu o governo, o Brasil estava prestes a implantar o Sistema Único de Segurança Pública, criado em 2018 depois de um amplo debate do Congresso.

Mas o sistema, planejado para integrar as bases de dados sobre crime de todo o país, permitindo a articulação de operações e atividades de inteligência, foi esquecido e até hoje carece de regulamentação e estrutura. Se estivesse em funcionamento, poderia ter ajudado a prevenir os ataques no Rio Grande do Norte.

O desleixo com a segurança pública é fruto de uma característica comum à esquerda e à direita: a falta de coragem para discutir o tema em profundidade. Para boa parte da direita, política de segurança pública é matar bandido. A esquerda historicamente evita o assunto, que considera “questão de polícia”.

Na campanha, o time de Lula ensaiou um debate sobre segurança em que se propunha a reformulação das polícias, mas ele foi rapidamente sufocado. Temia-se a má repercussão numa fatia do eleitorado que poderia fazer diferença decisiva em favor de Bolsonaro.

Houve, ainda, uma intensa discussão sobre a necessidade de criar um Ministério da Segurança Pública separado do Ministério da Justiça, para manter o foco no combate ao crime sistêmico. O tema rachou os aliados do petista, que ao final optou por deixar tudo como estava.

Ontem, enquanto cem homens da Força Nacional desembarcavam em Natal, Lula anunciava a distribuição de 270 viaturas policiais compradas no governo passado e a recriação do Pronasci, um programa que financia de viaturas a delegacias, passando por programas de educação e ressocialização de presos.

No discurso, Lula falou da importância do acolhimento à mulher e do investimento em educação para reduzir a criminalidade, mas não disse uma palavra sobre os acontecimentos no Rio Grande do Norte, onde teve 65% dos votos no segundo turno.

Aliados de Lula têm sido explícitos ao dizer que, pelo menos neste primeiro semestre, não há chance de o governo investir num debate mais aprofundado sobre a reforma das polícias, a ampliação da Força Nacional ou qualquer outro tema espinhoso na área de segurança pública.

É até compreensível, dado que o Planalto ainda não conseguiu resolver nem mesmo questões bem mais simples, como a nomeação para os cargos de segundo e terceiro escalão. Ou mais urgentes, como a formação da base de apoio no Congresso. Mas não deixa de ser preocupante e certamente cobrará um preço.

Da última vez que a esquerda deixou no vácuo um tema tão importante para o brasileiro médio, teve de engolir a ascensão de Jair Bolsonaro.

O Globo