Ditadura debochava de suas vítimas

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Foto: Ronald Fonseca / Agência O Globo

O Superior Tribunal Militar (STM), onde desaguavam os recursos judiciais dos presos políticos, se viu diante de uma saia-justa em dezembro de 1977, quando uma greve de fome eclodiu nos presídios brasileiros em solidariedade à situação desumana imposta a dois detentos no Recife. Publicamente, os ministros do STM concordaram em receber uma comissão e discutir o assunto. Porém, nas sessões secretas, a postura foi outra, marcada pela irritação e pelo deboche com o protesto: “Devia ser estimulada a greve de fome. A princípio, liberava mais vagas nos presídios”, disse um ministro.

O conteúdo desta sessão, ocorrida no dia 1º de dezembro de 1977, está disponível ao público, desde esta sexta-feira, no portal “Voz Humana – Os arquivos sonoros de presos políticos”, que reúne mais de 10 mil horas de gravações de julgamentos de presos políticos de 1975 a 1979, no STM. Embora tivesse concordado em receber uma comissão parlamentar no dia seguinte, o tribunal entendia que a situação carcerária dos presos políticos era problema dos estados, responsáveis pelos presídios, e não da Justiça Militar.

“Voz Humana”, fruto do trabalho do advogado Fernando Augusto Fernandes pela abertura dos arquivos até então secretos, será lançado em ato na OAB-RJ. O portal permite o acesso de pesquisadores, estudantes e interessados a informações sobre o julgamento de presos políticos. Há um vasto conteúdo, por exemplo, no qual fica expresso o conhecimento dos 15 ministros que formam o tribunal sobre a prática de tortura contra presos políticos.

Os áudios da 91ª sessão do STM, onde se discutiu o tema, são marcados por frases de chacota com a greve dos presos. As citações não têm autoria identificada. Depois de ouvir o colega dizer que greve de fome deveria ser estimulada, um dos ministros complementou: “Greve de fome repentina para poder abrir mais vagas”. Um terceiro ministro, igualmente não identificável, acrescentou: “Greve de fome é voluntária. Quer fazer greve de fome, abre vaga no presídio. É até melhor”. Alguns riem, capta a gravação.

O então presidente do STM, almirante Hélio Ramos, que publicamente se dizia a favor da apuração das denúncias de abusos nas prisões, naquela sessão revelou sua irritação com a crescente pressão de entidades internacionais em defesa dos direitos humanos: “Eu por dia recebo cerca de 10 ou 15 ofícios, cartas, e Anistia Internacional, e não sei o que da Dinamarca, e não sei o que dos presos. Eu diariamente recebo um monte. Agora eu nem leio mais. Mando botar em um envelope. Abro um envelope e boto essas coisas, diariamente”. Um ministro não identificado faz piada e pergunta se colecionava selos. E é respondido por outro: “é bom guardar os selos para a coleção.

O historiador Leandro Ribeiro de Lacerda, autor da tese de doutorado “Legalidade autoritária, conflitos na caserna e repressão à oposição: os julgamentos secretos no Superior Tribunal Militar entre 1975 e 1979” (Universidade Salgado de Oliveira), disse que o conteúdo das sessões secretas questiona a ideia de que o STM tinha postura benevolente com os presos políticos, reduzindo as penas na maior parte dos recursos. Para ele, as gravações revelam uma posição mais conservadora e até dura, vendo as greves como estratégia de desestabilização do sistema e se eximindo de agir frente às denúncias.

Naquele momento, greves de fome se espalhavam por presídios do Brasil. Meses antes, presas da Penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, pararam de se alimentar para exigir a transferência para o Presídio da Frei Caneca, no Estácio (RJ), onde poderiam ficar mais próximas de seus parentes. No dia 1º de dezembro de 1977, em reportagem publicada pelo GLOBO, o juiz-auditor da 7ª Circunscrição Judiciária Militar (PE), Antônio da Silveira Pereira Rosa, denunciou que o isolamento imposto pela penitenciária aos presos políticos Carlos Alberto Soares e Rholine Sonde Cavalcante, condenados à prisão perpétua, era inconstitucional.

Assim como já havia ocorrido da greve das presas do Rio, a situação da dupla provocou uma reação em presídios espalhados pelo Brasil, chegando a reunir 84 presos políticos em 27 dias de greve de fome. As reivindicações, iniciadas por maus tratos nas carceragens, foi evoluindo até assumir grandes pautas, como a luta por anistia. O presidente do STM, Hélio Ramos, chegou a sustentar que “se (os presos) morrerem é porque querem”. Ele citou a greve das presas no Rio: “Salvar a vida humana acontece como nas moças daqui (…). Na hora que elas ficaram com fome mesmo. Elas trataram de comer”.

— Fiz greve de fome em 1977, com outras presas do Talavera, para pedir a nossa transferência para a Frei Caneca. Queríamos ficar mais perto das famílias. Eu tinha uma filha pequena e meu marido também estava preso, na Frei Caneca. Minha filha ficava com a minha sogra, que morava em Niterói e, de 15 em 15 dias, vinha com ela para me visitar — se recorda a ex-presa política e historiadora Jessie Jane, viúva de Colombo Vieira de Souza.

O advogado Fernando Fernandes, responsável pelo portal, disse que ainda luta pela divulgação de áudios ainda secretos de sessões do STM. Ele aguarda o julgamento de uma reclamação sobre o tema sob a relatoria da ministra Carmen Lúcia no Supremo Tribunal Federal (STF), na qual alega que, no material entregue a ele pelo STM, por determinação do Supremo, “faltam gravações classificadas como secretas: pautas de julgamento e atas disponibilizadas possuem anotações com a indicação de julgamentos para os quais o áudio não é encontrado”.

— O projeto do portal Voz Humana deveria ser sobre um passado de ditadura, tortura e desaparecimento, mas é um trabalho de consolidação da democracia de hoje e com olhar no futuro – disse Fernandes.

O Globo