Filhas “solteiras” de servidores dilapidam os cofres públicos

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Foto: Dida Sampaio/Estadão

Filha do poeta e compositor Vinícius de Moraes, Georgiana de Moraes recebe todos os meses do governo federal R$ 13 mil. Na condição de filha de diplomata – carreira menos conhecida de Vinícius –, ela ganhou o direito de ser remunerada pelo Estado brasileiro após a morte do pai, em 9 de julho de 1980. Assim como Georgiana, 60 mil filhas de ex-servidores públicos recebem pensão de até R$ 39 mil por mês por serem solteiras. A despesa custa aos cofres públicos, por ano, aproximadamente R$ 3 bilhões.

Uma auditoria do governo identificou que 4 mil mulheres burlaram a legislação que lhes garantiu o benefício, mas seguem recebendo a mesada. O pente-fino da Controladoria-Geral da União (CGU) cruzou dados de cartórios de todo o País e descobriu que 2,3 mil se casaram ou mantêm união estável. Outras 1,7 mil ingressaram no serviço público. Essas duas condições são vetadas pela lei. Os pagamentos irregulares resultam num prejuízo de R$ 145 milhões por ano ao País.

Georgiana vive atualmente com um companheiro, que se apresentou como Carlos Alberto. Procurado, ele disse ao Estadão que os dois são “casados”. Ela confirmou que os dois moram juntos “há algum tempo”, mas negou o matrimônio. Questionada sobre as condições da união, Georgiana não atendeu mais a reportagem. Outra filha de Vinícius de Moraes, Maria Gurjão de Moraes recebe pensão pela morte do pai desde os dez anos. Hoje, com 53 anos, o valor do benefício é de R$ 13.684. O advogado de Maria Gurjão foi procurado, mas não respondeu.

As irmãs e outras beneficiárias tiveram a mesada cancelada em 2016, após uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) considerar irregular o pagamento a mulheres que possuíssem renda própria, como emprego na iniciativa privada ou uma atividade empresarial, por exemplo. Georgiana é psicóloga, cantora e empresária. Maria também é empresária, nas áreas de cultura e de publicidade.

A decisão do TCU foi suspensa menos de dois anos depois pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin. O ministro afirmou que o Tribunal de Contas não poderia retirar um benefício previsto em lei e determinou a volta do pagamento a filhas de servidores mesmo se elas trabalhassem (mais informações nesta página). Com isso, a mesada foi retomada e as beneficiárias também receberam valores retroativos ao período – no caso das filhas de Vinícius de Moraes, a soma foi de R$ 381 mil.

No mês passado, o governo gastou R$ 235 milhões com as 60 mil filhas solteiras de ex-servidores, de acordo com dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos compilados pelo Estadão. A despesa anual de R$ 3 bilhões bancaria, durante um ano, 180 mil aposentadorias do INSS no valor de R$ 1.302 pagas a quem tem 15 anos de trabalho e 60 anos de idade.

60.131 mulheres constam atualmente na folha de pagamento da União como “filhas maiores de 21 anos solteiras”
R$ 3,058 bi é o valor gasto por ano com o pagamento do benefício
3.955 mulheres recebem a pensão irregularmente, segundo auditoria da CGU – ou são casadas ou trabalham em cargo público
R$ 144,9 mi é o valor gasto por ano com esses pagamentos irregulares

A mesada começou a ser paga às filhas de funcionários públicos no governo de Juscelino Kubitschek, em 1958, quando foi aprovada a Lei 3.373, com a justificativa de que as mulheres não poderiam se sustentar sem pai ou marido. Depois disso, apesar das mudanças sociais e de costumes, a pensão foi mantida. Em 1990, o governo deixou de reconhecer novas beneficiárias, mas a mesada continuou para quem já estava na folha de pagamento.

Recebem o benefício filhas solteiras de ex-juízes, auditores fiscais, defensores públicos, escrivães, procuradores, delegados, desembargadores, assistentes jurídicos, peritos, professores e policiais. Há, ainda, filhas de diplomatas, ministros de Estado e ministros do Supremo, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do TCU.

No Itamaraty estão filhas pensionistas de servidores conhecidos da história do Brasil. Além das herdeiras de Vinícius de Moraes, a lista inclui Anna Maria da Câmara Canto, filha do ex-embaixador no Chile Antônio Cândido da Câmara Canto. São figuras de lados opostos da história. Vinícius foi cassado pela ditadura militar brasileira. Já Câmara Canto se aproximou da ditadura do chileno Augusto Pinochet.

Ao Estadão, Anna Maria disse que passou a vida inteira sozinha e é solteira. “Eu gostaria de ter casado e de ter tido filhos, mas, lamentavelmente, não tive essas duas coisas”, afirmou. Assim, ela recebe do governo brasileiro R$ 27.369 todos os meses.

A dentista Elisa Beatriz Ramalho Trigueiro Mendes, de 53 anos, é filha do ex-auditor fiscal da Receita Federal Durval Bartolomeu Trigueiro Mendes. Tinha 12 anos quando o pai morreu, em 1981, e herdou dele uma pensão. Desde então, recebe o benefício. Hoje, o valor é de R$ 26.075,71.

Apesar disso, registros públicos indicam que Elisa tem um companheiro, o médico Antônio de Aracoeli Lopes Ramalho, e duas filhas. As redes sociais dele têm fotos ao lado da família. “Parabéns para minha linda esposa e eterna namorada”, postou o médico no dia 12 de junho do ano passado.

Procurada, Elisa alegou que a ligação estava falhando assim que a reportagem informou o assunto da conversa. Depois, ela não atendeu mais e não respondeu aos contatos, feitos também por meio de aplicativo de mensagens.

Entre as filhas de ex-servidores que recebem os maiores valores está Maria Lucia Rangel de Alckmin, de 79 anos. Ela é filha do ex-ministro do Supremo José Geraldo Rodrigues de Alckmin e prima do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB). Dados do governo mostram que ela ganha, por mês, R$ 39.293.

É o mesmo valor do salário do presidente da República. Em janeiro, a mesada de Maria Lucia foi de R$ 58.939, porque o benefício teve o acréscimo de “gratificação natalina”.

Filhas de ex-deputados e ex-senadores que morreram até 1990 também têm direito à mesada do governo por essa condição. O País gasta cerca de R$ 30 milhões por ano com 194 mulheres filhas de parlamentares. No caso dos congressistas, bastava ser eleito para um mandato para garantir o pagamento para filhas solteiras.

Uma das maiores pensões do Congresso é paga à filha de um ex-analista do Senado. Ela recebe R$ 37.992,32 de pensão por mês, benefício do qual usufrui desde 1989. Um grupo de aproximadamente mais 30 mulheres recebe R$ 31.197,09 (cada uma) de pensão por serem dependentes de ex-servidores da Casa. Todas estão incluídas na categoria “filha maior solteira” na folha de pagamento.

Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, o advogado Diego Cherulli foi responsável por uma parcela das ações que chegaram ao Supremo contestando a determinação do TCU de bloquear a mesada das filhas que têm outra renda.

Ele reconheceu que pagar pensões a filhas solteiras de ex-funcionários não condiz com o atual momento do País. Por outro lado, defendeu ser necessário respeitar “o direito adquirido”, sob pena de, segundo ele, comprometer planejamentos pessoais e gerar injustiças. “Não podemos desconsiderar o direito adquirido e o planejamento das pessoas. A pessoa se planejou para receber, durante a vida toda, R$ 15 mil, R$ 20 mil. Entendo que, para quem já recebe, é devida a manutenção”, disse Cherulli.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Gestão e da Inovação informou que ainda não tomou providências sobre os benefícios irregulares. A pasta justificou que recebeu o resultado da auditoria somente em janeiro. “O relatório ainda está sendo analisado por alguns setores, que irão verificar todos os apontamentos da CGU, dentro de sua área de competência”, afirmou a pasta. “O resultado final será respondido, oportunamente, ao órgão de controle interno.”

O Itamaraty disse que não se manifestaria sobre o assunto. O Ministério das Relações Exteriores afirmou apenas que os processos de concessão, alteração e cancelamento de pensão civil são acompanhados pelo TCU.

Legislação: A mesada passou a ser paga às filhas de funcionários públicos em 1958, quando foi aprovada lei segundo a qual mulheres não poderiam se sustentar sem pai ou marido
TCU: Em 2016, o Tribunal de Contas da União realizou pente-fino e considerou irregular o pagamento a filhas que possuíssem renda própria
Supremo: Em 2018, Edson Fachin ordenou a volta da mesada; para ele, a pensão só poderia ser cortada se a mulher se casasse ou fosse servidora pública.

Estadão