Nova Legislatura da Câmara é marcada por baixarias

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Deputados Nikolas Ferreira, Eduardo Bolsonaro, Zé Trovão e Bibo Nunes. Imagem: Reprodução de vídeo

A performance transfóbica do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que usou peruca na tribuna da Câmara para atacar pessoas trans justamente no Dia Internacional da Mulher, está longe de ser um momento isolado no Parlamento brasileiro. Os debates e pronunciamentos diários no plenário e nas comissões têm sido marcados por ofensas, fake news, negacionismo e provocações que rebaixam drasticamente o nível da discussão política. As participações relevantes são cada vez mais raras.

A coluna fez essa constatação ao acompanhar os discursos e apartes nas sessões da última semana. Desde a terça-feira (14), parlamentares adeptos do estilo beligerante que os bolsonaristas implantaram na política em 2018 desfiaram um festival de baixarias.

Zé Trovão (PL-SC), que passou de ativista preso por organizar atos antidemocráticos a deputado, é um dos mais desrespeitosos. Na tribuna, se referiu à primeira-dama Janja Lula da Silva e ao presidente Lula como “a boneca e o ladrão”.

O deputado — que usa tornozeleira eletrônica — reclamou que “servidores do SUS estão sendo treinados para doutrinação na ideologia de gênero”. Na verdade, o treinamento visa melhorar o atendimento a pessoas trans, e não tem nada a ver com doutrinar. O argumento falso foi repetido por outra deputada bolsonarista, Bia Kicis (PL-DF).

Naquele mesmo dia, o deputado Maurício do Vôlei (PL-MG) defendeu o colega Nikolas Ferreira por sua fala sobre pessoas trans. Segundo disse, ele foi muito “assertivo”. “Estou muito satisfeito com o que o Nikolas falou aqui”, elogiou Mauricio, logo depois de sugerir a proibição de participação em competições olímpicas de pessoas trans do sexo feminino.

Mais à frente, em uma intervenção risível, Bibo Nunes (PL-RS) tentou livrar o ex-presidente Jair Bolsonaro da acusação de ter-se apropriado de joias enviadas pelo governo da Arábia Saudita, que deveriam estar no acervo da União. Acusou aos gritos os deputados de esquerda de sofrerem de “joiamania” e disse que os objetos preciosos foram incorporados ao patrimônio pelo Ministério da Fazenda “por abandono” e não por qualquer crime que Bolsonaro tenha cometido.

Na sessão, realizada quando o assassinato de Marielle Franco completava cinco anos, muitos parlamentares bolsonaristas contestaram a criação de um dia nacional para homenagear a vereadora carioca.

Para o historiador e professor de literatura comparada João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esse rebaixamento da argumentação no Parlamento é fenômeno global. “A queda de nível acentuada do debate político é uma das estratégias empregadas pela extrema direita em todo o mundo”, explica. “O objetivo é despolitizar a polis, pela transferência da lógica própria do universo digital e do engajamento das redes sociais para a esfera do político”.

Segundo Rocha, que é estudioso do discurso de ódio, nessa abordagem o que conta não é a densidade do argumento, mas o impacto imediato que ele produz. “É a lógica do meme, que destroi a linguagem, porque a reduz a dois ou três vícios recorrentes. É a submissão completa da atividade política à rede social”, critica. “Se isso não for combatido, a atividade política como nós a compreendemos simplesmente perderá sentido”.

Depois de quatro mandatos de deputado federal, cumpridos até 2019, Chico Alencar (PSOL-RJ) passou quatro anos longe de Brasília e voltou à Câmara agora. Estranhou muito. “Estou muito mal impressionado. O campo conservador, majoritário, está hegemonizado por uma minoria barulhenta, agressiva, extremada, ‘lacradora’, que de tudo engendra narrativa falsa, e alimenta fake news na midiosfera tóxica”, lamenta. Ele espera que a instalação da Comissão de Ética ajude a amenizar o problema.

“Era bem mais racional ter embates com o tucanato (agora à míngua) e com a direita representada por [Ronaldo] Caiado e ACM Neto (do então PFL) do que com o bolsonarismo tosco que tomou conta do PL, articulado com o Centrão fisiológico”, compara Alencar.

A quarta-feira (15) teve novas baixarias. A que mais repercutiu foi a acusação sem provas feita por Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, de ter ligação com o tráfico. A suspeita infundada surgiu porque o ministro esteve no Complexo da Maré, no Rio, sem o aparato de segurança que o filho 03 do ex-presidente Bolsonaro imaginava ser o necessário.

A resposta veio de Glauber Braga (PSOL-RJ): “É engraçado que o deputado Eduardo Bolsonaro, sempre que tem a oportunidade, tenta criminalizar alguma comunidade do Rio de Janeiro. Só que a maior apreensão de armas e de fuzis foi feita a partir da pista do condomínio do pai dele! A grande apreensão de cocaína estava onde? No avião do pai dele!”.

Glauber também lembrou o escândalo das joias árabes. “Já devolveu o colar? Já devolveu o relógio?”, perguntou, ironicamente, a Eduardo Bolsonaro.

Esse foi o debate de maior repercussão do dia, mas Giovani Cherini (PL-RS) na mesma sessão usou a tribuna para gastar sua cota de bizarrice. Lembrando os piores momentos de negacionismo do governo Bolsonaro durante a pandemia de covid-19, ele retomou críticas ao isolamento social, levantou a suspeita de que o uso de máscaras tenha causado doenças, reclamou da proibição de remédios ineficazes e deu informações falsas sobre a vacina. “Ela é experimental, foi feita às pressas”, berrou.

No dia seguinte, na sessão da quinta-feira (16), a visita de Flávio Dino à Maré voltou a ser um dos principais assuntos dos bolsonaristas. Nesse tema, o deputado Luiz Lima (PL-RJ) criticou o ministro por sua iniciativa de reduzir o número de armas em circulação no país, e fez uma cobrança inusitada. Queria que o ministro tivesse convencido traficantes a se render.

“O sr. esteve na localidade mais perigosa do nosso país, [não fez] nenhum pronunciamento em relação à entrega das armas desses traficantes”, reclamou Lima. “Quer ver as pessoas não morrerem, quer ver policiais não morrerem, quer ver inocentes não morrerem, é somente o tráfico de drogas entregar suas armas e se entregar”.

E prosseguiu, tropeçando no Português: “O errado não somos nós, somos ele”.

Para Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara, a desqualificação do debate é provocada pelas redes sociais, ferramenta que levou muitos políticos à Câmara. “Há um caminho diferente para se chegar ao Parlamento, e, a partir daí, há a ótica de reproduzir o trabalho que gerou a vitória”, analisa. Maia acredita que apesar de bem votados, os políticos que se apoiam nas redes construíram pouco relacionamento concreto com a sociedade. “Por isso, mesmo que sejam preparados, muitas vezes se alimentam dessas discussões mais baixas, de menor qualidade”.

O ex-presidente da Câmara acredita que com o passar do tempo a sociedade vai concluir que esse método não forma líderes capazes de liderar projetos de fôlego. “Com isso, o espaço para o espetáculo vai dar lugar ao trabalho concreto”, prevê.

Ex-deputado Rodrigo Maia Outro ex-deputado que presidiu a Casa, Marco Maia lamenta que a atuação parlamentar esteja mais pobre. “Hoje não se discute o que será feito para melhorar a vida das pessoas, a discussão se concentra apenas em debates fúteis e sem conteúdo”, avalia. “O prejuízo maior é o retrocesso nos direitos. Essa leva nova de deputados anti-identitários acaba reforçando os preconceitos e com isso dificulta o debate para avançar em ganhos sociais e direitos”.

O professor João Cezar de Castro Rocha acredita que há resistência em admitir que a revolução digital virou de cabeça para baixo o universo da política. “Isso é particularmente grave porque nessa área, já que é onde todas as transformações da economia e das relações interpessoais são decididas. Não é casual”, diz.

Pare ele, a extrema direita recusa a lógica da política — que é o diálogo com os contrários, a negociação de diferenças, a tentativa de conciliar opostos – e tenta trazer a atividade para a lógica das redes sociais, onde há um permanente embate de um contra o outro, uma lógica binária.

“Se isso não for de alguma forma enfrentado ou se nós não tivermos clareza do tamanho do desafio, muito em breve a política como atividade terá perdido sua autonomia”, alerta Rocha.

UOL