Governadores caem de boca na privataria

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NOS TRILHOS – Tarcísio de Freitas: dezesseis projetos na fila em São Paulo (Rogério Cassimiro/Governo do Estado de SP/.)

Desde a campanha do ano passado, Luiz Inácio Lula da Silva vem batendo na tecla o plano de reverter a privatização da Eletrobras, cujo processo, legítimo, foi encerrado há mais de um ano. Esse episódio não teria maiores consequências se ficasse apenas como mais uma de suas bravatas. O problema é que o petista parece ter transformado o negócio em uma obsessão, usando argumentos risíveis para justificar esse empenho e, em última instância, gastando energia à toa, dada a alta improbabilidade de se voltar atrás nesse assunto. Após reassumir o poder e citando termos como “lesa-pátria” e “não vai ficar por isso”, Lula escalou a Advocacia-Geral da União (AGU) e até estruturas menores da administração federal (caso da Secretaria do Consumidor) para tentar melar na Justiça e no Tribunal de Contas da União a exitosa operação, responsável por atrair 33,7 bilhões de reais em investimentos para o país. Enquanto tenta levar adiante essa improvável empreitada (falta combinar com o Congresso e o próprio TCU, que avalizaram a iniciativa), o presidente determinou a suspensão de diversos processos iniciados na gestão de Jair Bolsonaro. Da Petrobras aos Correios, passando pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e Dataprev, ele mandou engavetar oito estudos preliminares sobre possíveis novas privatizações. A ordem do Palácio do Planalto é explícita: brecar qualquer negócio nesse sentido.

Felizmente, na contramão do governo federal, alguns dos chefes dos estados mais ricos da federação não seguem a mesma cartilha de Lula e iniciaram seus mandatos com o pé no acelerador, prometendo planos ambiciosos na política de desestatização. Um dos destaques nesse campo é o governador paulista Tarcísio de Freitas, do Republicanos. Ele planeja negociar durante sua gestão dezesseis ativos. Segundo estimativas do Palácio dos Bandeirantes, o pacote pode atrair quase 170 bilhões de reais em investimentos. A joia da coroa é a Sabesp, companhia de saneamento avaliada em 33 bilhões de reais. Por isso mesmo, será a operação mais desafiadora.

Além de enfrentar a resistência de prefeitos e de funcionários da estatal, o projeto esbarra nos deputados estaduais do PT, que recriaram uma frente parlamentar para dificultar e até mesmo impedir a aprovação do projeto na Casa. O governador garantiu que só levará a ideia adiante se os estudos mostrarem redução no preço da conta de água. A previsão é que o levantamento seja concluído em seis meses e o processo de negociação, em 2024. “Se o projeto se mostrar viá­vel, vamos chegar para a população e perguntar se ela é a favor ou contra uma tarifa menor. As pessoas que darão suas respostas”, afirma Rafael Benini, secretário de Parcerias em Investimentos. No caso da privatização do Porto de Santos, projeto concebido quando Tarcísio estava no ministério de Bolsonaro, ocorre também uma trombada com os petistas — no caso, com o próprio Lula, que mandou brecar o processo.

Em outros estados com projetos avançados ou concluídos recentemente, a dissonância entre os poderes estaduais e federal também é visível. Em Minas, sob a gestão de Romeu Zema, do Novo, nem a assinatura do contrato de concessão do metrô de Belo Horizonte, realizada na última semana de março, colocou fim a uma interminável disputa político-­ideológica. Poucos dias antes da posse de Lula, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, entrou com uma ação popular tentando suspender o negócio. O processo foi julgado improcedente no início de março, mas Hoffmann recorre. Ela não está sozinha nessa luta. Dias antes da assinatura da papelada do pacote de concessão, o ministro de Desenvolvimento e vice-pre­sidente, Geraldo Alckmin, recebeu “romarias” de políticos alinhados ao PT solicitando o cancelamento do acordo. O próprio Alckmin, durante a transição, pediu ao então ministro da Economia, Paulo Guedes, o adiamento do leilão — ainda bem que não foi atendido.

Como sempre acontece em situações desse tipo, o corporativismo se mobiliza a fim de manter seus privilégios — muitas vezes, com narrativas absolutamente inverídicas. Servidores do metrô mineiro engrossaram recentemente o coro de oposição, cruzando os braços por uma semana, sob o argumento de que a privatização trará perda de emprego para a categoria. “Vai ocorrer o contrário disso, pois o contrato prevê a expansão do sistema, com a criação de uma linha nova”, afirma o secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas, Fernando Passalio. Segundo as previsões de Zema, os investimentos na rede metroviária mineira deverão chegar a 4 bilhões de reais.

A gritaria enfrentada por Zema nas Alterosas se repete igualmente nos pampas gaúchos. No Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, luta para desembaraçar a concessão da companhia de saneamento gaúcha, Corsan, finalizada em dezembro do ano passado. “Enquanto houver a discussão na Justiça, inclusive com pedido de liminar aceito, não conseguiremos prever uma data para assinar a documentação”, lamenta o secretário de Parcerias e Concessões, Pedro Capeluppi. A expectativa (otimista) do governo local é que os advogados públicos consigam destravar as ações até o fim de maio. Até aqui, outro mandatário bem-­sucedido na diminuição da estrutura estatal tem sido o governador do Paraná, Ratinho Junior. Mesmo com forte oposição do PT no estado, base eleitoral de Gleisi Hoffmann, ele conseguiu aprovar em três dias o plano de transformar a Companhia Paranaense de Energia, a Copel, em uma corporação. No processo, que deve ser concluído até o fim deste ano, a empresa será pulverizada entre vários acionistas, sendo que o governo ficará com uma fatia de 15% (atualmente, essa participação é de 31,1%). No fim do mês passado, ele comemorou a concessão de uma área do Porto de Paranaguá, garantindo investimentos de 338 milhões de reais e se prepara agora para pôr em prática um ambicioso projeto de concessão rodoviária em parceria com o governo federal. Um dos maiores do gênero nos últimos tempos, o pacote inclui 3 300 quilômetros de rodovias estaduais e federais. Estão previstos investimentos de 50 bilhões de reais em obras (duplicações, contornos, viadutos). Para vencer resistências no Palácio do Planalto, Ratinho Junior tem como aliado o ministro dos Transportes Renan Filho, mas Gleisi Hoffmann — sempre ela — já deu sinais de que tentará atrapalhar seus planos.

Evidentemente, o fato de alguns desses chefes do Executivo estadual estarem na oposição a Lula (o caso mais emblemático é o do paulista Tarcísio de Freitas, eleito com o apoio de Bolsonaro) é o motivo mais óbvio para essa dissonância entre governadores e o presidente no campo das privatizações. Para além disso, há o fato de que os estados, muitos deles com o caixa em baixa, não têm outra saída a não ser adotar uma postura mais pragmática, enxugando a máquina pública e atraindo investimentos privados. “É preciso buscar o racional em todos os processos, ver caso a caso e não transformar cada privatização em uma guerra ideológica”, diz o cientista político e professor do Insper Carlos Melo.

Relativamente recente, o processo de desestatização no Brasil começou a ganhar tração no governo Fernando Henrique Cardoso, com privatizações em áreas como as de mineração e de comunicações. Os dividendos foram inquestionáveis. O telefone deixou de ser um patrimônio caro e para poucos (uma instalação demorava uma eternidade), a ponto de ser declarado no imposto de renda, enquanto estatais como a Vale ganharam eficiência e multiplicaram lucros (leia a Carta ao Leitor, na pág. 6). “O sucesso das privatizações vai matando as ideologias contrárias, como a do PT, que perdeu essa luta”, afirma o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES na primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso.

Como fica nítido agora, Lula e seu partido ainda não entenderam essa derrota, investindo perigosamente na ultrapassada ideia do Estado como o grande indutor do crescimento, algo que vai na contramão de todas as evidências práticas e teóricas. Vale lembrar ainda que, nos anos petistas, o controle político de estatais como a Petrobras abriu as portas para grandes escândalos de corrupção. Definitivamente, algumas lições do passado não foram devidamente aprendidas pelo presidente.

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