Lula rompeu domínio militar de 134 anos

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Foto: Leo Pinheiro/Valor

A resposta à intentona bolsonarista de 8 de janeiro, com a decretação da intervenção civil na segurança pública do Distrito Federal após as invasões na praça dos Três Poderes, foi um marco ao romper com a tradição da tutela militar, uma característica que acompanha a história brasileira desde a Proclamação da República.

A opinião é do historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, um dos principais estudiosos do país sobre a questão militar, coautor do primeiro trabalho acadêmico que analisa e busca dar algum sentido histórico ao golpe mal sucedido patrocinado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

“A intervenção na segurança pública foi um baque. As tropas já estavam preparadas para tomar os principais pontos de Brasília [caso Lula decretasse a Garantia da Lei e da Ordem, que implicaria poder aos militares]. Isso causou profunda irritação no general [Júlio César] Arruda [então comandante do Exército] e no general Gustavo Dutra [Chefe do Comando Militar do Planalto]”, afirmou Teixeira da Silva em entrevista ao Valor. “Foi a primeira vez na República que não apareceu carro blindado para colocar fim a um movimento antirrepublicano e antidemocrático.”

Parte dessa rara prevalência civil sobre os militares, ressalta o acadêmico, foi confirmada na semana passada com o depoimento massivo em Brasília de mais de 80 militares investigados no Supremo Tribunal Federal (STF), episódio que segundo ele causou grande mal-estar nos meios militares.

Um dos que prestaram depoimento foi o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, que liderava o Comando Militar do Planalto (CMP) e que acabou destituído do cargo por decisão do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que também demitiu o então chefe do Exército, general Júlio César de Arruda. Teixeira da Silva conta que Arruda tinha “péssima relação” com integrantes do governo, inclusive protagonizando rompantes com alguns deles durante as tensas horas do 8 de janeiro.

Professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco Carlos Teixeira da Silva já lecionou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), instituição da elite da Força, além de ter assessorado o Ministério da Defesa. Ele deixou a função após a eleição de Bolsonaro em 2018.

Vários oficiais que estão ou estiveram em postos de comando no Exército, ou de destaque nos governos Temer e Bolsonaro, foram seus alunos. Um exemplo é o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que entrou na mira da Justiça por atentar contra a democracia, pela atuação no caso das joias sauditas, entre outros casos.

A proximidade com os fardados ajudou o professor na pesquisa do livro recém-publicado, em coautoria com o também historiador Karl Schurster, professor visitante da Universidade de Vigo (Espanha). Intitulado “Como não fazer um golpe de Estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023”, o livro foi lançado pela Editora da Universidade de Pernambuco (Edupe) menos de cem dias depois do episódio. Além de explorar a natureza militar da insurreição e as conexões autoritárias do governo Bolsonaro, o trabalho destaca os erros de avaliação da área de inteligência durante a fase de transição e montagem do terceiro governo de Lula.

Teixeira da Silva diz que “a ausência de uma limpeza dos órgãos de prevenção e inteligência” e a tolerada presença de bolsonaristas em altos cargos da República facilitaram a preparação do golpe. Ele ressalta ainda o fato de o novo governo não ter discutido durante a transição com especialistas em Defesa sobre a “situação das forças militares e de inteligência”, ignorando a colaboração de militares leais e especialistas ao adversário derrotado.

O erro, pontua o historiador, não se resumiu ao setor de inteligência, havendo uma “falha teórica” de diagnóstico de uma parte importante do entorno presidencial. Ele continua achando que “uma parte do governo ainda não entendeu” esse aspecto. “Eles não estão enfrentando o PSDB do Fernando Henrique Cardoso. Esse pessoal não negocia. Eles promovem o caos para crescer no caos”, ressalta.

Um dos aspectos lembrados por ele na entrevista é o papel do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Gonçalves Dias, chefe da segurança do Palácio do Planalto nos dois governos anteriores de Lula (entre 2003 e 2010) e que, em sua visão, teria perdido a confiança do presidente após o 8 de janeiro pela “flagrante falha do setor de inteligência”. Durante a transição, Gonçalves Dias e o ministro da Defesa, José Múcio, defendiam internamente que o movimento bolsonarista na porta dos quartéis diminuiria gradualmente com o tempo, sem riscos à segurança nacional.

Teixeira da Silva ainda vê em curso um “processo de desestabilização do governo”, citando episódios que, segundo ele, não podem ser analisados isoladamente, como a recente interrupção da sessão que deveria ouvir na Câmara dos Deputados o ministro da Justiça, Flávio Dino, por parte de deputados federais bolsonaristas. “Não temos força para enfrentar esse fenômeno porque não temos o diagnóstico”, afirma o pesquisador.

Valor Econômico