Barroso diz que mentir virou obsessão

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Foto: Cristiano Mariz/O Globo

A poucos meses de assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso avalia que o 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), foi resultado de um período em que se estimulou “o pior das pessoas em termos de ódio e agressividade”, somado a uma “combinação de incompetência e cumplicidade”.

Em entrevista exclusiva ao Valor, o ministro evitou apontar culpados – ele diz que isso é tarefa para os investigadores – e defendeu que o país precisa passar por um processo de “desobsessão da mentira” para superar o trauma. Segundo ele, o STF é o foro certo para julgar as denúncias contra os golpistas e o Congresso tem direito de instalar uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para passar a limpo o que aconteceu naquele dia.

Em relação às pautas econômicas, Barroso se diz um “juiz com muitas preocupações fiscais”, ao mesmo tempo em que defende não ser possível culpar a Corte pela insegurança jurídica que existe no Brasil em relação a questões tributárias.

A questão da disseminação de fake news não tem solução única nem bala de prata’’
Para ele, a principal razão é a “absurda complexidade do sistema brasileiro”. Por isso, aponta ser urgente a aprovação de uma reforma tributária que simplifique o sistema e o torne mais justo. “A litigiosidade tributária não é culpa do Judiciário, é culpa da legislação”, aponta.

Barroso foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entre 2020 e 2022 e assume o comando do Supremo em outubro, após a aposentadoria da ministra Rosa Weber. A seguir, os principais pontos da entrevista:

Valor: A liminar do ministro André Mendonça para suspender o julgamento sobre a tributação de empresas que recebem incentivos fiscais pode inviabilizar o novo arcabouço fiscal?

Luís Roberto Barroso: Não comento decisão de colega. O que eu posso dizer é que sou um juiz com muitas preocupações fiscais. Sou preocupado em tomar decisões justas, porque acho que o descontrole fiscal pode afetar os juros e a inflação, e isso impactará sobretudo os pobres.

Valor: Dois julgamentos importantes também foram suspensos por pedidos de vista recentemente: a da correção do FGTS e a das contribuições assistenciais. Como lidar com essas interrupções?

Barroso: Serão interrupções breves, essa é a parte boa. Houve uma mudança regimental no Supremo que não permite pedido de vista por mais de 90 dias. Depois desse período, o processo volta ao plenário automaticamente. No caso do FGTS, o ministro Nunes Marques disse que pretende devolver prontamente, e de certa forma até sinalizou que concordaria com o relator.

Valor: O senhor é o relator desse caso e defendeu que o FGTS tenha ao menos a remuneração da poupança. Seu voto vai prevalecer?

Barroso: Propus uma solução relativamente óbvia e preocupada com a responsabilidade fiscal. Não é justo remunerar a poupança do trabalhador, que o protege em caso de demissão, por um valor inferior à caderneta de poupança, que é possivelmente o investimento mais conservador do mercado. O FGTS tem menos liquidez ainda, porque só pode ser sacado em poucas situações. Tive o cuidado de não deixar um cadáver no armário. Embora eu ache que tenha havido perdas passadas, me pareceu melhor remeter ao Congresso ou a uma negociação coletiva. Além disso, a Advocacia-Geral da União demonstrou que já vinha pagando mais que a caderneta de poupança. Portanto, eu nem me voltei ao passado, apenas disse que, no futuro, eles não podem pagar menos que a poupança.

Valor: O julgamento sobre a contribuição assistencial também está provocando reações. Como esclarecer isso à sociedade?

Barroso: Há uma incompreensão geral. O Supremo continua a entender que a contribuição sindical não pode ser imposta, pois, por lei, é facultativa. Em segundo lugar, o STF mantém a posição de que a contribuição confederativa para centrais de trabalhadores também é facultativa. A contribuição assistencial é uma terceira modalidade, ajustada em caso de negociação coletiva entre o sindicato dos empregados e o patronal. Nós queremos incentivar a negociação coletiva. O STF decidiu que o negociado deve prevalecer sobre o legislado. Portanto, a contribuição assistencial não é compulsória. Se o trabalhador não quiser contribuir, basta não aderir ao acordo.

O 8 de janeiro aqui trouxe uma reação mais forte da sociedade que o 6 de janeiro nos EUA’’
Valor: Ainda há muita dúvida, também, em relação aos efeitos da decisão sobre a “coisa julgada” em área tributária. Muitas empresas reclamam de insegurança jurídica. Considera que essa é uma avaliação pertinente?

Barroso: Também aí houve uma grita injusta. A questão é técnica. Em direito tributário, você tem relações jurídicas instantâneas – impostos que você paga uma vez e a relação termina – e de trato continuado, como o Imposto de Renda, em que a cada ano as regras para pagamento se renovam. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) é uma relação de trato continuado. Em 1992, alguns contribuintes conquistaram o direito de não pagá-la, sob o fundamento, reconhecido por alguns juízes, de que ela deveria ter sido instituída por lei complementar e não por lei ordinária. Portanto, eles não pagaram até 2007, quando a matéria chegou ao Supremo. O STF disse que estava errada a decisão que exigia lei complementar, porque é válida a criação desse tributo por lei ordinária. Então, daqui para frente todo mundo tem que pagar. Mudou o direito aplicável àquela questão. É como se surgisse uma lei nova, que não pode ser aplicada para trás, mas é válida para frente. Os contribuintes fizeram uma aposta de que a coisa julgada antiga prevaleceria contra o novo entendimento do STF. Eu acho que foi uma aposta errada.

Valor: Por quê?

Barroso: A maior parte das empresas provisionou esses recursos enquanto o caso era discutido na Justiça, sendo que algumas depositaram em juízo. Quem nem provisionou, nem depositou, fez uma aposta de grande risco, que eu jamais, quando era advogado, recomendaria a um cliente. É claro que quem perde sempre lamenta, mas eu não acho que acusar o STF de causar insegurança jurídica seja uma boa avaliação do que aconteceu.

Valor: Na sua avaliação, qual seria o modelo ideal para o sistema tributário no Brasil?

Barroso: Esta matéria está no Congresso e é preciso aguardar. Como cidadão, tenho grande simpatia pela unificação dos impostos sobre consumo: IPI, ICMS e ISS, tributos que trazem grande litigiosidade para o país. Nosso sistema tributário precisa de duas mudanças: uma de simplificação e outra para tornar o sistema mais justo, porque ele é altamente concentrador de renda. São dois capítulos diferentes que talvez devam ser discutidos separadamente, para não aumentar a dificuldade na aprovação.

Valor: Qual o seu diagnóstico sobre os atentados de 8 de janeiro?

Barroso: O prolongado período de descrédito das instituições, em que se extraiu o pior das pessoas em termos de ódio e agressividade, desaguou no 8 de janeiro. Além de uma combinação de incompetência e cumplicidade.

Valor: Por parte de quem?

Barroso: Não cabe a mim detalhar. Há investigações em curso para apurar isso.

Valor: E como superar esse trauma institucional?

Barroso: O 8 de janeiro no Brasil trouxe uma reação mais vigorosa da sociedade do que o 6 de janeiro nos Estados Unidos, em que muita gente procurou contemporizar e minimizar. Claro que você tem pessoas que vivem as narrativas falsas, que cultivam a mentira e querem dizer que foi coisa de gente infiltrada. Mas sabemos quem estava lá: pessoas que não aceitaram o resultado das eleições e estavam pedindo o golpe de Estado, o que é crime. Portanto, estamos lidando com pessoas que cometeram crime, seja pedindo a ruptura violenta da ordem democrática, seja depredando o patrimônio público. Ninguém em sã consciência pode apoiar aquilo, não importa se conservador ou liberal.

Advogado tem deveres éticos. Juiz tem deveres de imparcialidade e de independência”
Valor: Mas como enfrentar a parcela da população que segue desconfiando da Justiça Eleitoral?

Barroso: Essa ideia de que houve fraude nas eleições é uma obsessão pela mentira. O processo foi todo transparente. Estiveram lá dentro a Polícia Federal, o Ministério Público, as Forças Armadas, as universidades, os organismos estrangeiros, e ninguém foi capaz de detectar fraude. É uma mentira. Portanto, as pessoas precisam passar por um processo de “desobsessão” da mentira, aceitar o resultado eleitoral e se preparar para competir na próxima eleição.

Valor: O ex-presidente Jair Bolsonaro será julgado em breve no TSE. A obsessão pela mentira, como o sr. disse, pode gerar inelegibilidade?

Barroso: Eu já não sou mais ministro do TSE, já cumpri o meu tempo lá. Na minha visão, processo é prova. A legislação eleitoral prevê as hipóteses em que alguém pode se tornar inelegível. Portanto, não é uma questão de gostar mais ou de gostar menos, ou de ter preferência política por A ou B. É uma questão de saber se há provas de uma conduta ilícita.

Valor: O STF é o lugar certo para julgar os golpistas, mesmo que eles não tenham foro especial?

Barroso: Quem conduz essas ações é o ministro Alexandre de Moraes. Mas a mim parece natural que, sendo os mesmos fatos, os julgamentos devem ser únicos. Se distribui para as instâncias inferiores, haverá uma fragmentação dos processos e uma multiplicidade de decisões. Você poderia ter decisões desencontradas, o que seria muito ruim. Então, faz todo sentido – até porque os ataques foram contra o próprio STF – que haja uma decisão única.

Valor: A CPMI sobre o 8 de janeiro é necessária?

Barroso: Em uma democracia, há a separação de Poderes. Se o Congresso achou que era próprio instalar uma comissão parlamentar de inquérito, está no seu papel.

Valor: O Congresso também discute o PL das Fake News. Qual o melhor caminho para construir colaborações realmente efetivas com as plataformas digitais?

Barroso: Esse é um tema que não tem uma solução única, nem bala de prata. Precisa de participação do Congresso, das plataformas e da sociedade. Há uma crença de que deve haver, em parte, uma regulação estatal, com regras gerais, e em parte, uma autorregulação das próprias plataformas. No tocante à responsabilização das plataformas com conteúdo de terceiros, a regra geral no direito brasileiro é de que elas são obrigadas a removê-los após a primeira ordem judicial, é o que diz o Marco Civil da Internet. O que se discute hoje em dia é a criação de outras duas possibilidades excepcionais. A primeira, um dever de cuidado, um algoritmo que retire condutas criminosas, que representam grave risco à sociedade e que, por serem mais de um bilhão de postagens por dia, ninguém conseguiria controlar pela via humana. Em segundo lugar, as plataformas devem remover postagens que violem direitos de imagem ou de direitos autorais, a pedido privado ou notificação extrajudicial. Se houver situações duvidosas, espera-se que o Judiciário se pronuncie. Essas são as discussões que estão postas à mesa no mundo.

Valor: O julgamento sobre o marco temporal das terras indígenas está previsto para 7 de junho. Paralelamente, o Congresso voltou a discutir o tema. De quem deve ser a palavra final?

Barroso: Há muitas variáveis na mesa e a minha bola de cristal está um pouco embaçada. Mas são instâncias distintas: o Congresso Nacional legisla e o STF julga à luz da Constituição e da legislação em vigor. Portanto, é preciso aguardar.

Valor: Em relação à indicação do próximo ministro do STF, o sr. vê problemas em Lula indicar o seu advogado pessoal, Cristiano Zanin?

Barroso: Eu não vejo nenhum problema de o presidente indicar qualquer pessoa que tenha mais de 35 anos, reputação ilibada e notável saber jurídico. A própria expressão “advogado pessoal” é ambígua. O advogado tem deveres legais e éticos. O juiz tem deveres de independência e de imparcialidade. Então eu não vejo nenhum problema em relação ao doutor Cristiano Zanin ou qualquer outro advogado que preencha os requisitos constitucionais. A partir do momento em que alguém se torna juiz, os compromissos dele são para com a Constituição e para com o país.

Valor: Após quatro anos de frequentes embates entre o Executivo e o Judiciário, como avalia a relação entre os poderes no governo Lula 3?

Barroso: As relações entre o Judiciário e o Executivo devem ser relações institucionais de respeito mútuo. Meu sentimento é que as coisas estão se passando dessa forma. Infelizmente, no passado, nós tivemos um retrocesso civilizatório. Ninguém deve achar que isso é normal. Na vida, a integridade vem antes da ideologia.

Valor: O sr. assume a presidência do STF em outubro. Que legado pretende deixar do seu mandato?

Barroso: Por enquanto, estou só estudando a Justiça, os números. Tenho conversado com pessoas da área de inteligência artificial e com juízes, para compreender algumas das dificuldades, entender os gargalos e me aprofundar no uso da tecnologia para aprimorar a Justiça.

Valor Econômico