Direita quer cobrar por plasma humano

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Foto: Reprodução

A proposta de alterar a Constituição para permitir a remuneração aos doadores de plasma humano e a sua comercialização, inclusive para o exterior, acirrou os ânimos de representantes do setor de hemoderivados e provocou uma ofensiva do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que atua para manter o monopólio do Estado sobre o sangue.

O objetivo da proposta de emenda à Constituição (PEC) que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado é mudar a legislação para que o país possa ter um mercado de sangue semelhante ao dos Estados Unidos, maior produtor global de plasma e que remunera o doador.

A senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora da matéria, alterou o texto original da PEC e acrescentou um ponto polêmico: que seja permitida a “coleta remunerada de plasma, ou seja, possibilidade de pagamento ao doador”, e que haja “autorização de comercialização do plasma humano para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias, produção nacional e internacional de medicamentos hemoderivados e outros”.

Se aprovada, a PEC abre caminho para a comercialização do sangue mediante o pagamento do doador, hoje vetado pela Constituição, além de praticamente inviabilizar a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), estatal subordinada ao Ministério da Saúde que foi criada em 2005 para reduzir a dependência brasileira em relação ao mercado externo de hemoderivados.

O parque industrial da Hemobrás está em construção há 13 anos e ainda não tem condições de processar o plasma, o que só deve acontecer – no melhor dos cenários – a partir de 2025.

O texto da proposta gerou reação de associações e médicos que defendem a atuação da iniciativa privada na coleta e processamento do plasma, única forma vista de o Brasil se tornar autossuficiente na matéria, mas são contrários à remuneração ao doador, que consideram eticamente condenável. As multinacionais do setor, contudo, fazem lobby pela aprovação.

A PEC (…) apresenta solução que pode ser desestruturante”
— Carlos Gadelha

O plasma é um dos componentes do sangue usado na produção de medicamentos para doenças como câncer, hemofilia, Aids, insuficiência renal, entre outras. Atualmente, ele é retirado das bolsas de sangue dos hemocentros do país, reunido pela Hemobrás e enviado para a Europa, onde é processado pela Octapharma, uma das maiores multinacionais do setor.

Da parte do governo federal, a possibilidade de mudança gerou uma reação em defesa da Hemobrás, que já recebeu investimentos superiores a R$ 1,4 bilhão e ainda não funciona em sua plenitude. A empresa foi alvo de denúncias por corrupção na construção do parque industrial (com funcionários punidos), assim como a Octapharma, investigada no início dos anos 2000 na Máfia dos Vampiros e, depois, num escândalo em Portugal relacionado exatamente com o plasma.

No governo Michel Temer (2016-2018), a política do então ministro da Saúde, Ricardo Barros, foi de esvaziar a Hemobrás, conforme ele mesmo admitiu ao Valor: “É um assunto complexo para ficar com a estatal, independente da competência do pessoal. Monopólio nunca é bom”. Depois, na gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022), a Hemobrás entrou na lista de estatais que seriam privatizadas, mas a negociação não avançou. Em abril de 2021, na gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, a estatal assinou contrato com a Octapharma. Segundo a Hemobrás, todo o plasma enviado retorna ao Brasil como quatro medicamentos diferentes que são distribuídos pelo SUS.

Neste ano, segundo Antonio Edson de Souza Lucena, diretor-presidente da Hemobrás, a Octapharma deve processar 150 mil litros de plasma brasileiro ao custo estimado de R$ 182,2 milhões – o contrato assinado com a multinacional prevê o pagamento de 225 euros por litro de plasma fracionado.

A PEC do plasma é de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), que a apresentou no ano passado sem a previsão de remuneração ao doador, mas com a abertura à iniciativa privada. O objetivo dele era evitar o desperdício de plasma, o que o governo federal nega acontecer atualmente. Em 2020, relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) estimou que, desde 2017, quase 600 mil litros de plasma foram desperdiçados no Brasil.

“A PEC identifica um problema relevante, mas apresenta uma solução que pode ser desestruturante para o sistema de oferta de sangue, de plasma e para o maior investimento de hemoderivados na América Latina nos últimos 20 anos”, afirmou Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, referindo-se aos investimentos feitos ao longo dos anos na Hemobrás. Ele visitou na semana passada as instalações (o complexo tem 17 edifícios) da estatal na cidade pernambucana de Goiana, precedendo uma visita que a ministra da Saúde, Nísia Trindade, fará nesta segunda-feira (15) ao local.

A questão para especialistas é que, mesmo com uma Hemobrás fortalecida e atuante, ela dificilmente terá condições de levar o país à autossuficiência. Nominalmente, a empresa terá capacidade para processar 500 mil litros de plasma por ano, o que atenderia em torno de 20% das necessidades brasileiras, segundo o médico Paulo Tadeu de Almeida, da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), que reúne hemocentros privados.

Lucena, da Hemobrás, acha difícil falar em autossuficiência, mas ele e Carlos Gadelha, do Ministério da Saúde, se mostraram abertos a parcerias com o setor privado, mas desde que a estatal tenha o controle do processo.

“Esse deveria ser um assunto estratégico, como foi no passado. Havia uma política de autossuficiência de hemoderivados, a Hemobrás foi criada em razão dessa política. Mas passados 18 anos, ela não resolveu os problemas”, afirmou Dimas Tadeu Covas, professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor-científico da ABHH (Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular), que defende uma atualização na Lei do Sangue, que é de 2001, para o Brasil se tornar “independente”.

Para ele, a remuneração ao doador incluída na PEC “parece mais um jabuti que foi colocado para não ter avanço e dificultar a tramitação do projeto”.

Valor Econômico