Presidente da CNBB critica “espírito conservador” dos brasileiros

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Foto: Thiago Leon/Santuário Nacional

Eleito para presidir a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) até 2027, o arcebispo de Porto Alegre, Dom Jaime Spengler, diz que a esquerda precisa mudar o discurso e deixar em segundo plano bandeiras como a legalização do aborto ao buscar o diálogo com os cristãos no país. O povo brasileiro tem espírito muito conservador, avalia Dom Jaime, e pautas sensíveis tendem a ser “instrumentalizadas”, dificultando a aproximação com os religiosos.

Para o líder católico, o combate à desigualdade social e à pobreza podem ser formas mais eficientes para o governo tentar se conectar com esse segmento religioso.

Seis meses atrás, o segundo turno da eleição presidencial demonstrou a dificuldade do PT e do então candidato e atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dialogar com cristãos, principalmente com os evangélicos. O processo eleitoral foi marcado por debates sobre religiosidade, cristianismo e até santanismo. Com a disseminação de “fake news” sobre o suposto fechamento de templos por Lula, o petista divulgou uma “carta compromisso” a evangélicos, ressaltando que é contra o aborto e a favor da liberdade religiosa.

Apesar de a esquerda ter uma relação de maior proximidade com os católicos do que com os evangélicos, Dom Jaime diz que é preciso uma outra abordagem para dialogar com os fiéis, em geral.

Sempre que religião e política estiveram juntas, os resultados não foram muito positivos”
— Dom Jaime Spengler

“O nosso povo tem o espírito muito conservador”, diz. “Em geral, nossa população pauta a vida pessoal, cotidiana por princípios muito contundentes, marcados pela nossa tradição religiosa”, afirma. “As esquerdas ou alguns segmentos da esquerda, trazem elementos que não encontram respaldo na comunidade da fé”, diz, citando o aborto e a eutanásia. “Existem pautas que não podemos aceitar e que, de alguma forma, sempre se tenta trazer de novo para o debate político e social.”

O arcebispo defende que pautas delicadas sejam, sim, debatidas, mas não em processos eleitorais. “Precisa de tempo para serem debatidas. Precisa de pessoas que nos ajudem a refletir sobre, não se levado simplesmente pelo calor do momento ou da publicidade. Essas pautas devem ser orientadas por princípios éticos. A dimensão da fé por, sim, nos ajudar nesse debate.”

Já no início da gestão Lula, a Igreja Católica, por meio da CNBB, se manifestou contra a decisão do governo de revogar portarias que dificultavam o acesso ao aborto legal, e divulgou uma nota reprovando a iniciativa do governo. Dom Jaime diz que o governo Lula não buscou um diálogo com a entidade católica sobre esse protesto. Questionado se as pautas identitárias e bandeiras como a legalização do aborto podem afastar a CNBB do governo, o religioso reforça que essas questões “precisam ser discutidas com transparência”.

O presidente da CNBB diz que a entidade parte do princípio de ter uma “posição crítica ao governo, qualquer que seja”, mas afirma que busca construir pontes com a gestão Lula. Um passo para construir essa relação pode ser o combate à pobreza. “O grande desafio no Brasil é colocar no centro do debate a desigualdade social e a pobreza crônica. É um escândalo a desigualdade, o número de pessoas nas ruas. Grita aos céus.”

A CNBB também buscou uma aproximação com o então presidente Jair Bolsonaro (PL) no início da gestão. Dom Jaime, então vice-presidente da entidade, foi um dos interlocutores, mas o diálogo não prosperou. A falta de ações de Bolsonaro na pandemia foi o ponto de ruptura com a entidade.

O fim do mandato de Bolsonaro foi marcado por tensões com a Igreja Católica e por um forte desgaste depois da presença -não desejada por lideranças católicas -do então presidente e candidato no Círio de Nazaré, em Belém, em outubro, e da confusão feita por bolsonaristas no santuário nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida (SP), no dia da padroeira, em 12 de outubro. Às vésperas do segundo turno, sem citar Bolsonaro, Dom Jaime disse que o povo brasileiro assistia à instrumentalização da fé na busca de votos e pregou boicote a quem propaga “fake news”. “Quem promove mentiras não merece o voto, pois não é confiável”, disse, na época.

O presidente nacional da CNBB faz um balanço crítico da gestão Bolsonaro, com o descaso no combate à pandemia, a falta de vacinação, o negacionismo e as mais de 700 mil mortes por covid-19. “Não estava à altura do que o momento histórico exigia”, diz. Dom Jaime cita também o aumento da pobreza e as tentativas de destruição de biomas e dos povos originários sob Bolsonaro. “São situações que maculam a história recente”, diz. “É contraditório com aquilo que se espera de um chefe da nação.”

Dom Jaime pondera que muitos eleitores continuam apoiando Bolsonaro apesar dos problemas da gestão porque o ex-presidente defende bandeiras que são caras a uma parcela expressiva da população, como “Deus, família e pátria”.

“Os famosos elementos [Deus, pátria e família] que marcavam os discursos do então presidente merecem atenção”, diz. “Esse tipo de discurso alcançou uma repercussão muito grande no seio da sociedade porque trazia certamente esperança e tocava em valores que, para muitos de nós, se talvez não conseguimos elaborar no discurso, trazemos no coração como referência maior para nossas buscas”, afirma o religioso católico.

Dom Jaime critica as tentativas de instrumentalização da fé. “Sempre que religião e política estiveram juntas, os resultados não foram muito positivos”, diz. É crítico também da atuação de religiosos em “coalizão” no Parlamento, como a bancada evangélica. “Os princípios de bancada, de coalizão dão sinais expressivos de que não promovem aquilo que se espera de uma atividade política equilibrada”, diz. “Há interesses por trás desses grupos.”

O líder católico afirma não ter opinião formada sobre o PL das “fake news”, em tramitação na Câmara, que é criticado pelos evangélicos. “Mas somos contrários à mentira, às ‘fake news’. Isso para nós é muito claro”.

Eleito presidente da CNBB há dez dias, em 24 de abril, o arcebispo diz que a Igreja Católica precisa mudar sua linguagem para conseguir falar de forma mais direta e clara com a população; usar novas tecnologias de comunicação e reforçar a vida comunitária. Ao falar sobre o crescimento de evangélicos no país e a redução dos católicos, avalia que os evangélicos conseguem ter uma comunicação mais efetiva com o povo e uma presença maior nas comunidades.

A eleição da nova diretoria da CNBB foi criticada por escolher apenas brancos. Lideranças negras da igreja reclamaram, em carta, do “absolutismo da brancura”. Dom Jaime reconhece a desigualdade não só com os negros, mas também com os povos originários. “Mas não podemos tornar essa pauta ideológica, ideologizada.”

Valor Econômico