Bolsonaro incrimina auxiliar no caso da vacinação

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Foto: Dida Sampaio/Estadão e Reprodução/Justiça Eleitoral e Redes sociais

Era 18 de abril quando o delegado Fábio Alvarez Shor, da Polícia Federal (PF), o homem responsável pela condução do inquérito policial 4874, conhecido como inquérito das milícias digitais, endereçou ao ministro Alexandre de Moraes uma petição com 114 páginas. Pedia a decretação da prisão de seis acusados daquilo que considerava ser uma “estrutura criminosa” e buscas e apreensões em endereços ligados a 17 suspeitos, entre eles o coronel da reserva do Exército, Marcelo Costa Câmara, todos alvos da Operação Venire.

Coronel da Arma de Infantaria, Costa Câmara serviu na gráfica do Exército e no gabinete do então comandante da Força, Enzo Peri. Passou a trabalhar no gabinete da Presidência em 22 de fevereiro de 2019, após a passagem para a reserva. Durante o tempo em que esteve no 3.º andar do Palácio do Planalto, que abriga o gabinete presidencial, foi apontado como o homem da “Abin paralela”, o responsável pelo “compliance do presidente”. Agia nos bastidores enquanto o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid – outro homem de confiança de Bolsonaro – ficava diante das câmeras.

Em 1.º de janeiro de 2023, tornou-se um dos oito assessores que o ex-presidente tem direito a manter e, nessa condição, viajou três vezes aos Estados Unidos. Acumula atualmente a aposentadoria militar de R$ 26.698,83 e o salário civil de R$ 10.373,30. Fez sua última viagem para assessorar o ex-presidente há 15 dias – só neste ano consumiu R$ 170 mil em diárias e passagens. Sua casa foi alvo das buscas da Polícia Federal no dia 3 de maio. O motivo estava entre as páginas 77 e 81 da petição do delegado sobre o esquema de falsificação de certificados de vacina contra a covid-19. O documento dizia:

“A Secretaria de Governo digital informou que a conta do sistema ‘GOV.BR’ do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO, utilizada para acessar o aplicativo ConecteSUS e gerar os certificados de vacinação, tinha inicialmente o e-mail de cadastro: Mauro.cid@(…)gov.br, associado à conta na data de 27/12/2021, pela Central de Atendimento do ‘GOV.BR’. Posteriormente, na data de 22/12/2022, às 08h20min, a conta do sistema ‘GOV.BR’ do ex-Presidente da República JAIR BOLSONARO teve a alteração cadastral para um novo e-mail denominado “danmarcamara70@(…)com”.

O delegado afirmava que, ao que tudo indicava, a conta do ex-presidente no sistema do SUS era administrada até o dia 22 pelo tenente-coronel Cid, ex-chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República. Segundo ele, “coincidentemente”, logo após gerar o certificado de vacinação às 8h20 do dia 22 de dezembro, o e-mail de cadastro foi alterado para danmarcamara70@(…)com, de Costa Câmara.

Então assessor especial do presidente, o coronel foi nomeado no dia 27 de dezembro para o cargo de “assessor de ex-presidente”, acompanhando Bolsonaro aos Estados Unidos. De acordo com o delegado, a alteração cadastral foi feita a partir do endereço de IP: 170.246.252.101, o mesmo usado para emitir o certificado de vacinação ideologicamente falso, com registro no Palácio do Planalto.

Shor achava que a alteração do cadastro poderia ser atribuída ao fato de que Cid deixaria de assessorar Bolsonaro no 1.º de janeiro. O policial sabia que essa função seria passada a outras pessoas, entre as quais o Costa Câmara. E relatou sua suspeita: “Isso explicaria a mudança no cadastro do aplicativo ConecteSUS do ex-presidente.” Por fim, o delegado explicou que até aquele momento, as informações colhidas indicavam que “Jair Bolsonaro, Mauro Cid e, possivelmente, Marcelo Costa Câmara tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados”. Tudo com o objetivo de “gerar vantagem indevida para o ex-presidente”.

O papel de Costa Câmara ficou claro quando Bolsonaro depôs. Foi no dia 16 de maio que o ex-presidente sentou-se diante do delegado e passou a ser indagado sobre sua atuação no escândalo dos certificados falsos de vacinação. Cada pergunta do delegado correspondia a uma suspeita da PF. Só na 25.ª indagação sobre a conduta do ex-presidente é que Shor chegou ao nome de Costa Câmara.

O delegado assim consignou a resposta de Bolsonaro: “Indagado se solicitou a Marcelo Câmara, seu assessor, que acessasse o aplicativo ConecteSUS e emitisse o certificado com dados falsos de vacinação contra a Covid-19 em nome do declarante, respondeu que não, pois como jamais tomou vacina contra a COVID, não havendo motivo para emissão do referido certificado”.

Naquele momento, Shor contou a Bolsonaro que a Secretaria de Governo Digital informara que a conta do sistema “GOV.BR” do ex-presidente, usada para acessar o ConecteSUS e gerar certificados de vacinação, passara a ser gerenciada pelo e-mail de Costa Câmara em 22 de dezembro de 2022, após ter permanecido associada ao e-mail de Cid por um ano. O delegado perguntou a razão daquela alteração.

Bolsonaro respondeu que “devido ao fato de que Mauro Cid deixaria a sua assessoria no dia 31 de dezembro, transferindo suas atribuições para seu substituto, Marcelo Câmara, possivelmente, essa alteração foi realizada para passar o controle de acesso do sistema GOV.BR dele para o coronel”. O ex-presidente confirmava assim a suspeita da PF de que o coronel passara a cuidar da conta.

Na pergunta seguinte, o presidente ainda tentou afirmar que não via relação entre a mudança e a emissão de certificado falso, mas o delegado o alertou que o Ministério da Saúde havia informado à PF que seu usuário havia emitido um certificado de vacinação contra a covid-19, por meio do ConecteSUS, às 14h19 do dia 27 de dezembro. Bolsonaro respondeu desconhecer essa emissão.

Assim foi a resposta do presidente: “Esclarece que, possivelmente, estava cumprindo expediente no Palácio da Alvorada, no horário em que foi gerado o certificado de vacinação”. Ele disse ainda não ter pedido a Cid ou a Costa Câmara que acessassem o ConecteSUS e emitissem o certificado em seu nome. Mesmo ao ser confrontado com o fato de o IP usado para a operação pertencer à Presidência e estava cadastrado no Planalto, Bolsonaro disse não ter conhecimento de quem poderia ter feito isso.

Ao tentar se livrar da acusação, o ex-presidente confirmou que Costa Câmara havia assumido as funções de Cid. A substituição de um pelo outro seria atestada ainda em outra investigação feita pela PF: a das jóias das arábias. Bolsonaro contou aos federais que Costa Câmara era uma das duas únicas pessoas que tinham acesso ao depósito, na fazenda do piloto Nelson Piquet, ex-campeão de Fórmula-1, ao seu acervo pessoal. Era ali que estavam dois conjuntos de jóias presenteadas pela Arábia Saudita, que o ex-presidente teve de devolver após ordem do Tribunal de Contas da União.

Além de Costa Câmara, o outro militar com acesso ao local era o tenente Osmar Crivelatti, um antigo conhecido do quartel-general do Exército pela proximidade com o ex-comandante, o general Eduardo Villas Bôas. Crivelatti foi o primeiro militar a exercer o cargo de Adjunto do Comandante do Exército. Função criada por Villas Bôas, ela é a mais alta ocupada por um praça na Força. Crivelatti assumiu o cargo em 2015 e ali permaneceu até 2019. E assim, ao procurar se isentar de culpa, dizendo desconhecer as ações de subordinados, Bolsonaro forneceu à PF mais um tijolo para o delegado confirmar o papel de Costa Câmara.

Chefe da Casa Militar do presidente Ernesto Geisel, o general Gustavo de Moraes Rego dizia que, se um comandante é surpreendido pelo que acontece no quartel, ele deve mandar apurar e punir o responsável. Em sua definição, o chefe “é responsável por tudo o que acontece – pelo que ele sabe e pelo que não sabe – dentro de sua unidade”. A regra de Moraes Rego mostra que Bolsonaro precisa muito mais do que dizer que desconhecia tudo o que acontecia debaixo de suas barbas. Ainda mais quando o delegado Shor, a exemplo de Sêneca, parece dizer: cui prodest scelus, is fecit, ou aquele que se beneficia do crime é quem o cometeu.

Estadão