Deputadas trans causam surto de transfobia na Câmara

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Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Quatro anos depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir pela criminalização da homofobia e da transfobia com a aplicação da Lei do Racismo, falas transfóbicas seguem fazendo parte de discursos políticos — muitos deles sem ganhar repercussão, como o gesto do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que usou uma peruca no plenário da Câmara, em março. O GLOBO analisou todos os pronunciamentos em sessões abertas da Casa no primeiro mês do ano legislativo e identificou seis outros casos. Na média do período, é como se um político destilasse palavras preconceituosas a cada duas sessões no espaço que deveria abrigar debate sobre políticas públicas.

Foram analisadas 51 horas de gravação de 11 sessões do plenário, entre 2 e 28 de fevereiro. Entre os parlamentares, três são filiados ao PL, um ao PP, uma ao Novo e um ao Republicanos. O primeiro caso identificado foi do deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB), que em 7 de fevereiro questionou o uso de linguagem neutra pelo governo:

— Todes? A nossa gramática é muito clara: todos englobam todos, não precisa de “todes” — discursou.

Para o professor e criador de conteúdo digital Thiago Peniche, a fala pode ser classificada como transfobia porque “desconsidera a existência de um grupo social”.

Em junho, é celebrado o Mês do Orgulho LGBTQIAP+. Na decisão do STF, os ministros decidiram, por 8 votos a 3, que casos de homotransfobia “ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável”.

No início de maio, o deputado José Medeiros (PL-MT) apresentou um projeto de lei que pretende descriminalizar atos transfóbicos. A proposta do parlamentar é que não seja abordado como crime “tratar alguém de acordo com sua classificação biológica original como homem ou mulher”. Medeiros critica a decisão do STF de 2019 e argumenta ainda que “pessoas comuns” não devem ser “obrigadas a aceitar percepções quanto à sexualidade humana que vão contra os costumes sociais e as evidências científicas”.

Para Duda Salabert (PDT-MG), primeira pessoa trans eleita para uma vaga na Câmara — junto com Erika Hilton (PSOL-SP) — há uma estratégia política de parlamentares da extrema-direita, especialmente em ações como a de Nikolas Ferreira:

— Eles usam a questão trans como cortina de fumaça para evitar discutir questões fundamentais para o Brasil e conseguir engajamento nas redes, já que esse tema historicamente é tratado como polêmico. A ultradireita está discutindo qual banheiro as travestis vão usar e a presença da população trans no esporte. Mas o que nós queremos é primeiro discutir questões essenciais para a gente, que são emprego, escola e saúde — destaca a parlamentar.

Segundo um estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de 2021, 1,9% da população brasileira é de transgêneros ou não binárias. Essa porcentagem equivale a cerca de 4 milhões de indivíduos. A Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) estima que 82% dessas pessoas tenham abandonado os estudos ainda na educação básica.

A instalação de banheiro unissex com acessibilidade na Câmara provocou polêmica entre deputados e teve sua sinalização posteriormente alterada. Em 9 de fevereiro, o deputado Coronel Telhada (PP-SP) classificou a iniciativa como “absurda” e reforçou que é “contra a ideologia de gênero” — o termo se refere a uma suposta “estratégia de sexualização de crianças” ao abordar pautas sobre gênero e sexualidade com menores, o que não tem respaldo na prática. Para Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o tema compõe um movimento contra a pauta trans.

— Figuras públicas, principalmente essas do núcleo mais duro de extrema-direita, já construíram parte da sua notória atuação pública a partir da retórica contra a ideologia de gênero. Depois da introdução dessa falácia no debate público, se atingiu um outro patamar na tentativa de enfrentamento à resistência trans — pontua Benevides.

Em outras duas ocasiões, nos dias 9 e 15, os deputados Eli Borges (PL-TO) e Messias Donato (Republicanos-ES) protestaram contra um suposto “processo de transição de gênero” realizado em crianças no Hospital das Clínicas da USP — a informação falsa de que menores são submetidos a cirurgias e tratamentos hormonais circulou em redes sociais.

O hospital acompanha crianças e adolescentes que apresentam incongruência ou não conformidade de gênero — quando a pessoa não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento —, mas, seguindo a recomendação do Conselho Federal de Medicina, eles só podem passar por hormonização a partir dos 16 anos e pela cirurgia de adequação sexual aos 18.

Borges classificou os atendimentos como “bagunça de princípios” e afirmou que estas crianças seriam “reféns de pais que vivem a máxima de um ativismo ideológico”. Já Donato afirmou que o hospital estaria “estimulando a sexualização em menores que ainda não são maduros o suficiente para compreender o tema”. Para Julio Cesar Nicodemos, doutor em Psicanálise com experiência em atendimento clínico à população trans, “respeitar a forma como as crianças se identificam não significa a sexualização de seus corpos”.

Em 14 de fevereiro, os deputados Gilvan da Federal (PL-ES) e Adriana Ventura (Novo-SP) questionaram a decisão do STF de declarar inconstitucional uma lei de Rondônia que proíbe o uso de linguagem neutra em instituições de ensino e editais de concursos públicos. O parlamentar capixaba pediu “respeito às crianças” e declarou que “não existe criança trans”. Ventura, por sua vez, afirmou que o STF estaria “avalizando a linguagem neutra”.

Salabert e Benevides lembram que os ataques à população trans no Parlamento brasileiro não são exclusividade da legislatura atual e que há uma reação à eleição de duas deputadas trans.

— A narrativa implica que essa ocupação se espalharia como se fosse uma epidemia e contaminaria principalmente as crianças, que são tomadas como “seres puros”. Esta ideia produz um discurso de resistência à presença dessas pessoas, como se elas fossem células contagiosas, o que não é verdade — afirma Nicodemos.

A deputada Salabert ressalta, porém, que o “barulho” que estes deputados têm feito nas redes sociais para ampliar sua base eleitoral conservadora não tem atrapalhado a atuação dela na Casa:

— De modo geral, os parlamentares respeitam minha identidade e têm construído comigo políticas para a superação da crise no país. Há um grupo minúsculo de ultrarreacionários que flertam com o fascismo e eles fazem barulho, mas isso não impede a realização da nossa atividade legislativa.

Falas transfóbicas no plenário da Câmara

Cabo Gilberto Silva (PL-PB)

Todes? A nossa gramática é muito clara: todos englobam todos, não precisa de ‘todes’. 07/fev

Eli Borges (PL-TO)

É uma questão de ciência, biológica. Precisamos defender essas crianças que não podem ser reféns de pais que vivem a máxima de um ativismo ideológico. Estamos vivendo uma bagunça de princípios nessa nação. 09/fev

Coronel Telhada (PP-SP)

Sou pela família, sou contra a ideologia de gênero e o absurdo que nós vemos aqui nessa Casa e em outros lugares [banheiro unissex]. 09/fev

Gilvan da Federal (PL-ES)

Chegou a hora de o Congresso aprovar uma lei contra o pronome neutro. Deixem nossas crianças em paz. Não existe criança trans, existe criança. A inocência das nossas crianças tem que ser respeitada em sala de aula e essa história de pronome neutro é uma aberração. 14/fev

Adriana Ventura (NOVO-SP)

A prioridade das nossas crianças é aprender a língua oficial portuguesa que não sabem. Agora querem liberar a linguagem neutra nas escolas. Eu não tenho nada contra ela desde que saibam falar o português correto. 14/fev

Messias Donato (Republicanos-ES)

Contra o público infantil, eles também investem em ações político-ideológicas travestidas de formas socioeducativas de deturparem a língua portuguesa para inserir a linguagem neutra na sociedade. Estão estimulando a sexualização em menores. 15/fev

O Globo