Ex-militante de junho de 2013 faz mea-culpa

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Foto: Luiz Cláudio Barbosa/Futura Press/Estadão Conteúdo

São Paulo, junho de 2013. Pizzaria na Santa Cecília, região central de São Paulo. Lucas Macedo, o “Legume”, e primos da sua esposa sentam-se à mesa. Ele percebe um burburinho entre os funcionários. “Você é o Lucas do Passe Livre?”, aborda um garçom. “Sou”, responde de pronto. “É que a gente conversou aqui, viu, e estamos com vocês, beleza? A gente não vai na manifestação por causa do horário de trabalho”. Na saída, o barman não se contêm e grita: “A luta continua!”. Trabalhadores, pessoas comuns, que enfrentam o transporte diariamente, demonstrando apoio à causa defendida pelo Movimento Passe Livre (MPL): transporte público gratuito para todos e contra aumento da tarifa.

Lucas, àquela época com 29 anos, mestrando em História, professor na rede particular de ensino e integrante do MPL, não sabia, mas seu rosto era um dos mais conhecidos do movimento que nasceu em 2005 e vivia o ápice de sua história à frente das manifestações que tomaram o país.

São Paulo, junho de 2023. “Fiquei impactado”, disse ao g1 sobre ser reconhecido numa pizzaria. Uma das tarefas de Lucas era falar com a imprensa. Ele ficou mais conhecido após dar entrevista para o “Roda Viva”, da TV Cultura. Outra era dar plantão em delegacia acompanhando gente detida e estabelecendo o contato do movimento com advogados.

De lá pra cá, uma década passou. Mas seria uma década muito tempo? “É muito e é pouco”, reflete. Resposta típica de um historiador que compreende que existem muitas formas de mensurar o tempo. No tempo geológico, um relevo pode levar milhões de anos para ser formado. No tempo histórico, que trabalha com as modificações que as sociedades promovem, a contagem do tempo cronológico não determina as mudanças. “Nossas vidas pessoais não mudaram muito, com a diferença que alguns se formaram, outros não”, diz hoje após terminar seu mestrado.

Mas quando se é perseguido, a escala de tempo parece mais lenta. “Teve um turbilhão de coisas de lá para cá, tanto na luta social quanto na mobilização política, nas derrotas que a gente sofreu”.

Durante muito tempo, integrantes do MPL foram questionados pela Justiça. Alguns, defenderam-se, por questões políticas. Um dos presos em 2013, por exemplo, só teve seu processo arquivado em 2022. “A gente teve que encarar um grau de perseguição muito grande, inquéritos enormes. Toda semana, militantes recebiam a polícia na casa deles chamados a depor”, conta Legume.

Em outubro de 2014, seis militantes se acorrentaram em frente à Secretaria da Segurança Pública de São Paulo contra um inquérito para investigar todos os casos que envolviam protestos na capital. Entre os chamados a depor estavam militantes do movimento. Os oito intimados recusaram-se se a depor no inquérito para “não legitimá-lo”.

Lucas saiu do MPL em 2015. Em um texto publicado na internet, escreveu que o grupo foi “incapaz de superar os seus próprios limites ao não se pensar como um movimento inserido nas dinâmicas de lutas mais amplas dos trabalhadores”.

Foi duramente criticado. “Posso comentar, sim. Foi um texto mal escrito”, assumiu ao g1. Ele explicou que não foi uma crítica à horizontalidade do movimento (sem lideranças), mas uma avaliação pessoal sobre uma paixão maior do MPL pela própria organização que com a causa. Num trecho, Lucas escreve que uma das consequências das mobilizações foi “nos apaixonarmos por nós mesmos”. Hoje, afirma que não estava propondo repensar a horizontalidade. “Mas como o MPL passou a lidar com a horizontalidade de uma maneira restritiva, isso me incomodava naquele momento”.

Uma das responsabilidades de Lucas em 2013 era lidar com a imprensa. Sobre essa relação, disse que a abordagem dos jornalistas variava. Em alguns momentos hostil, principalmente na fase inicial do movimento. Em outros momentos, muito cordial.

Ele lembra que Arnaldo Jabour fez um texto atacando forte o movimento, mas depois se reposicionou e disse “me enganei, eles querem renovar o Brasil”.

“Era uma relação instrumental porque ajudava a chamar mais gente para protestos e ajudava a construir um clima social em torno da opinião pública sobre o aumento de tarifa. “É uma duplicidade ali, né? Porque ao mesmo tempo que a imprensa pode te proteger de alguma maneira, você fica muito exposto também a sofrer ameaças”, conta.

E de fato sofreram. Em um momento de junho 2013, quando o MPL disse que não haveria mais manifestações, posts na internet circularam com ameaças de morte aos integrantes.

Tudo isso combinado a vídeos que viralizaram com imagens da polícia reprimindo manifestantes e prendendo pessoas porque, por exemplo, carregavam vinagre. Naquele momento, o Facebook era a rede social que pautava o discurso.

Uma coisa que pouca gente fala, segundo Lucas, é que houve uma série de manifestações na periferia. Nos dias 18 e 19 o MPL não convoca manifestação, mas mesmo assim elas continuaram na Zona Norte, Zona Leste. Na M’Boi Mirim, na Zona Sul, houve 24h de manifestação.

Depois, relembra, as pessoas travaram o Rodoanel, invadiram a via da CPTM, quebram 89 ônibus no terminal Jardim Ângela, e “a coisa” saiu do controle.

Começa a ter manifestação de todo jeito no Brasil inteiro .“Começa a virar um negócio gigantesco”.

Neste momento, o estado recua, enxerga que não tem mais controle sobre as coisas . “Aí eles preferem reduzir o aumento”. Nos 17, 18, 19 e 20 não teve repressão policial, lembra o historiador.

Lucas fala que junho de 2013 deixou um legado. A curto prazo, cita as ocupações de terra no Grajaú, na Zona Sul, onde as pessoas falavam “se vocês conseguirem reduzir a passagem, a gente vai conseguir também a nossa casa, nossa moradia’”. E uma herança concreta: a conquista do passe livre estudantil em São Paulo.

“A pauta secundarista de 2015 foi uma herança prática. Quando o governo fechou escolas, o passe livre estudantil permitiu que estudantes se organizassem livremente, ocupando escolas, porque conseguiam circular livremente de uma escola para outra de maneira gratuita. Eles falam disso abertamente”.

Professor de História no ensino fundamental, Lucas Monteiro não integra partido político e não é mais figura pública de nenhum movimento. Em 2015, apoiou a luta secundarista em São Paulo. Ele identifica-se com pautas progressistas.

“Continuo apartidário”, diz o professor aos 39 anos.
Dos quatro ex-integrantes do MPL entrevistados pelo g1, é o único que faz uma autocrítica.

“Acabou bem, mas eu acho que a gente como movimento social não conseguiu incorporar grande parte das pessoas que estavam ali se mobilizando nas nossas estruturas de mobilização. Talvez a gente devesse ter continuado, pautando uma coisa que fosse mais adiante [depois dos governos anunciarem a redução da tarifa]. Queria ter pautado a tarifa zero, o passe universal. Naquele momento, foi um equívoco não continuar na rua por isso. Deveria ter aproveitado a força que a gente tinha ali. Pautado a tarifa universal pra todos naquele momento nacionalmente”.

As implicações das manifestações com o cenário político dos anos subsequentes incomodam o ex-integrante do MPL . “Falta repertório sobre mobilizações. Não inventamos nada. É como se as mobilizações tivessem passado a existir ali no Brasil, para muita gente. Em 2013 não tinha uma estrutura formal, financiamento, nada. É como se a direita tivesse surgido ali em 2013. Já existia antes. Para mim, 2013 é claramente muito mais parecido com o que aconteceu na década de 1920 [quando o fascismo surgiu em um contexto de crise econômica e medo do comunismo soviético]”.

Sobre manter contato com as pessoas do MPL de 2013, diz que com algumas sim, outras não. Legume disse que não teve depressão clinicamente tratada nesse período, mas “muitos momentos de tristeza”.

Perguntado se o MPL foi patrocinado pela CIA, algo que viralizou na época, Lucas riu. “Um delírio completo. Uma coisa muito bizarra. Basta olhar a vida das pessoas. A vida continua muito parecida”.

G1