ONU acusa Bolsonaro de semear um golpe
Foto: Brendan Mcdermid/Reuters
Na semana em que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) vai julgar a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, o ex-presidente é acusado por um documento de um relator da ONU de ter ameaçado a democracia brasileira e de questionar, sem provas, o sistema eleitoral. O informe, preparado por Clément Nyaletsossi Voule, será debatido diante do Conselho de Direitos Humanos da ONU e denuncia, pela primeira vez de forma explícita, o ex-presidente.
Na prática, o comportamento de Bolsonaro será exposto pela primeira vez a um debate internacional. Voule ocupa o cargo de relator especial da ONU sobre direitos à reunião pacífica e liberdade de associação. O documento não implica qualquer tipo de sanção internacional contra Bolsonaro. Mas amplia a pressão internacional e o constrangimento sobre o ex-presidente. O documento ainda pode servir para embasar decisões ou argumentos do Judiciário, no próprio país. Segundo o relator, a política implementada por Bolsonaro: Desmontou a estrutura de participação social na definição de políticas públicas. Atacou as instituições democráticas e questionaram a eleição. Promoveu a influência militar em órgãos do Estado e nomeou oficiais militares para vários cargos no Governo, incluindo cargos de alto nível, como o Chefe de Gabinete do Presidente e o Ministro da Saúde. Expressou ambivalência em relação aos valores democráticos fundamentais, defendendo abertamente o regime militar autoritário que vigorou entre 1964 e 1985 e atacando as instituições democráticas. Negou a existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, fez avaliações positivas dos eventos que ocorreram durante a ditadura, que incluíram graves violações de direitos humanos, banalizou tais violações e glorificou pessoas condenadas por terem participado da prática de crimes contra a humanidade ou que estavam sendo investigadas por tais crimes. Minimizou a pandemia, criticando o distanciamento social e outras medidas de proteção e atacando especialistas médicos e instituições científicas. Para completar, o informe diz que: Em um país onde quase 700.000 pessoas morreram de COVID-19, a resposta do governo não apenas colocou em risco a vida de milhões de pessoas, mas também aprofundou a polarização e a desconfiança no governo. Voule esteve no Brasil no primeiro semestre de 2022 e realizou visitas a diferentes cidades. No documento, ele admite a crise no país. A transição do Brasil do regime ditatorial para a democracia foi formalizada pela Constituição de 1998, que garante o direito à liberdade de expressão, associação e reunião. As garantias constitucionais, no entanto, foram afetadas negativamente nos últimos anos como resultado da proliferação de leis e decretos adotados pelas autoridades brasileiras em uma tentativa de minar esses direitos. Tais leis e decretos enfraqueceram a democracia do país e a participação da sociedade civil e das comunidades marginalizadas nos assuntos públicos. Na época da visita do relator especial, o documento aponta que a democracia no Brasil “vinha experimentando há anos um nível significativo de retrocesso”. “O retrocesso em relação aos valores e compromissos democráticos, que já vinha ocorrendo há anos, foi marcado por um aumento dos valores iliberais, da violência política e dos ataques às instituições democráticas”, disse. Segundo ele, as eleições de outubro de 2022 “aumentaram essa crise democrática”. “Nesse contexto, o Relator Especial observou com preocupação o aumento dos incidentes de discurso de ódio e violência política”, destacou. Voule, de fato, destaca que não se trata apenas de um período de quatro anos de crise. “Durante a última década, a democracia no Brasil enfrentou diversas crises políticas, econômicas, sociais e de saúde que foram exploradas para consolidar a desconfiança e as profundas divisões entre a população e alimentar o incitamento à violência, ao ódio e à intolerância em uma sociedade desafiada pela discriminação estrutural e pela crescente desigualdade”, disse. Mas o destaque central de seu informe foi mesmo o desmonte promovido pelo ex-presidente, num documento que, para observadores, representa um verdadeiro indiciamento de seu governo.
O relator expressou preocupação especial com o fato de que, antes das eleições, a campanha de Bolsonaro envolveu “ataques contínuos contra instituições democráticas, o judiciário e o sistema eleitoral no Brasil, incluindo o sistema eleitoral eletrônico”. “Em reuniões com o Relator Especial, especialistas também identificaram ligações entre campanhas de desinformação generalizadas que atacam os sistemas eleitorais e a coalizão partidária e os apoiadores de Bolsonaro”, disse. Para ele, as eleições constituem um evento significativo na vida de uma nação que oferece uma oportunidade única para fortalecer os princípios e valores democráticos e para que a sociedade civil se envolva com os princípios e valores democráticos. “Os esforços das autoridades governamentais para minar o processo eleitoral transparente, desencorajar a participação política e rejeitar resultados eleitorais desfavoráveis são inaceitáveis em um sistema democrático”, denunciou. Um aspecto ainda que preocupou o relator foi o fato de que o aumento da política iliberal corresponda à diminuição do apoio à democracia entre os brasileiros. No informe, ele cita estudos que mostraram que o apoio a um regime autoritário em algumas circunstâncias atingiu 41% em 2018 no Brasil, em comparação com 19% em 2013. “Reverter essa tendência negativa deve ser uma prioridade do Estado”, completou.
O relator destaca que, depois de sua visita, o questionamento da eleição de outubro de 2022 foi um ponto marcante desse ataque contra a democracia. “Embora as eleições tenham sido reconhecidas pela comunidade internacional e pelos observadores eleitorais como livres, justas e transparentes, elas foram marcadas por desinformação e violência política”, disse. “Bolsonaro contestou os resultados sem fornecer provas substanciais e continuou seus ataques ao sistema eleitoral e às instituições”, apontou. “Em 8 de janeiro de 2023, seus apoiadores invadiram e vandalizaram os prédios do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, pedindo uma intervenção militar para destituir o presidente democraticamente eleito, Lula da Silva”, alertou. O relator especial “condenou esse ataque contra as instituições democráticas e as tentativas de minar o voto democrático do povo brasileiro e pediu aos apoiadores que deixassem os prédios que haviam invadido”. Ele ainda destacou como, nas palavras do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, os ataques às instituições governamentais foram “o ponto culminante da distorção contínua dos fatos e do incitamento à violência e ao ódio por parte de atores políticos, sociais e econômicos que alimentaram uma atmosfera de desconfiança, divisão e destruição ao rejeitar os resultados das eleições democráticas”.
Um dos destaques do informe é ainda o envolvimento militar no governo civil de Bolsonaro. “Durante sua presidência, ele (presidente) promoveu a influência militar em órgãos do Estado e nomeou oficiais militares para vários cargos no Governo, incluindo cargos de alto nível, como o Chefe de Gabinete do Presidente e o Ministro da Saúde”, destacou o informe. O documento cita como, em 2021, o Tribunal de Contas da União informou que havia 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no Governo. Isso era o dobro da participação militar em comparação com o Governo anterior, que tinha 2.765 militares em cargos civis. Mas era a linha de Bolsonaro que mais chamou a atenção. “O governo de Bolsonaro expressou ambivalência em relação aos valores democráticos fundamentais, defendendo abertamente o regime militar autoritário que vigorou entre 1964 e 1985 e atacando as instituições democráticas”, disse. “Durante seu governo, Bolsonaro e membros de seu governo frequentemente negaram a existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, fizeram avaliações positivas dos eventos que ocorreram durante a ditadura, que incluíram graves violações de direitos humanos, banalizaram tais violações e glorificaram pessoas condenadas por terem participado da prática de crimes contra a humanidade ou que estavam sendo investigadas por tais crimes”, afirmou. O texto é contundente: “Não se tratava de comentários isolados, mas sim de parte de uma narrativa contínua que buscava minar os esforços importantes para lembrar a história das violações de direitos humanos do passado e reconhecer as vítimas e suas famílias”.
No informe, o relator ainda destaca como Bolsonaro também adotou medidas que promoveram a posse de armas pelos cidadãos e facilitaram o acesso a armas e munições no país. “Durante sua visita, quase todos os atores que se reuniram com o Relator Especial expressaram fortes preocupações sobre essas medidas e os riscos que elas representavam para a democracia e os direitos humanos, incluindo o direito de participar de assuntos públicos sem medo de violência”, destacou.
O documento também aponta para a resposta do ex-presidente à pandemia da covid-19. “Como em outras democracias iliberais, Bolsonaro respondeu à pandemia da doença do coronavírus (COVID-19) minimizando a doença, criticando o distanciamento social e outras medidas de proteção e atacando especialistas médicos e instituições científicas”, constatou. “Em um país onde quase 700.000 pessoas morreram de COVID-19, a resposta do governo não apenas colocou em risco a vida de milhões de pessoas, mas também aprofundou a polarização e a desconfiança no governo”, disse Voule.
Para o relator, o aumento da violência política é “outro indicador do retrocesso da democracia no Brasil”. “Embora a violência policial seja um desafio no Brasil no que diz respeito à proteção dos direitos humanos, nos últimos anos, o surgimento da violência política como consequência do retrocesso da democracia tem sido observado”, disse. Segundo ele, o aumento da violência política e do discurso de ódio ameaça destruir os valores democráticos fundamentais em uma sociedade que luta contra o legado de racismo e discriminação contra comunidades indígenas e tradicionais, intolerância histórica contra outros grupos minoritários, como pessoas LGBTI+ e refugiados, solicitantes de asilo e migrantes.
O informe ainda destinou uma parcela importante de sua análise para alertar sobre a adoção de políticas que restringem a participação social e política e limitam os espaços de consulta relativos às políticas públicas e à tomada de decisões no país. “Desde 2019, pelo menos 650 conselhos, comitês e outros mecanismos participativos foram dissolvidos por decreto presidencial, enquanto os restantes, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos, estão enfrentando sérios obstáculos ao seu funcionamento, incluindo questões orçamentárias e administrativas que impedem a realização de suas reuniões”, disse. “O desmantelamento dessa estrutura de participação cívica tem sido prejudicial à democracia brasileira, ao Estado de Direito, à inclusão social e ao desenvolvimento econômico”, denunciou. Para ele, o decreto presidencial prejudica ainda mais os princípios da governança democrática, como abertura, transparência e prestação de contas, reduz a independência e a autonomia da sociedade civil e ameaça a promoção e a proteção dos direitos humanos, inclusive o direito de participar da condução dos assuntos públicos e o direito de acessar informações.
O informe não deixa ainda de destacar o uso excessivo da força e detenção arbitrária de manifestantes. Mas sempre com uma resposta diferenciada se a manifestação é favorável ao governo. “Os protestos pacíficos que expressam discordância e criticam as políticas do governo são supostamente os mais afetados”, disse. Por exemplo, entre maio e julho de 2021, manifestantes antigoverno saíram repetidamente às ruas para exigir o impeachment de Bolsonaro, mais vacinas contra a COVID-19 e ajuda emergencial durante a pandemia. Em 29 de maio de 2021, em Recife, Pernambuco, os manifestantes foram reprimidos pela polícia militar com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Protestos semelhantes foram realizados em 3 e 24 de julho de 2021 em São Paulo, quando a polícia usou gás lacrimogêneo contra os manifestantes. “Isso contrastou com as marchas e manifestações realizadas em apoio ao ex-presidente, que não foram submetidas à repressão”, destacou. A cobertura da imprensa, que é fundamental em qualquer democracia e uma ferramenta importante para prevenir a violência e garantir a responsabilização por má conduta durante os protestos, tem enfrentado sérios obstáculos. Os veículos de mídia, jornalistas, artistas e outros profissionais de comunicação, em especial mulheres e pessoas LGBTI+, têm sido submetidos a violência física e ataques psicológicos, inclusive on-line. Para ele, o “desafio mais significativo para o Brasil reside no fato de que o país não conseguiu superar a violência policial que, nos últimos anos, foi associada à violência política como consequência da narrativa populista emergente”. “Essa situação afeta seriamente o espaço cívico no país e, em particular, a capacidade das minorias e das populações indígenas de se organizarem e se reunirem livremente sem enfrentar restrições discriminatórias ou respostas violentas da polícia”, completou.
Terminado o governo Bolsonaro, o relator “está confiante de que o Brasil tem a capacidade, a vontade política e a maturidade para restaurar a confiança e a esperança entre aqueles que sofreram com a marginalização e anos de violações de direitos humanos, inclusive como resultado do exercício de suas liberdades fundamentais”. Para ele, a vibrante sociedade civil do país tem um papel importante a desempenhar na salvaguarda da democracia e da coesão do Brasil. “Como visto nos últimos anos, a sociedade civil tem resistido ao discurso populista que mina a legitimidade de seu trabalho e também tem resistido ao aumento de medidas legais e leis que visam restringir o espaço cívico e a participação em assuntos públicos”, disse. Em sua avaliação, é importante que as novas autoridades “reconstruam a confiança na sociedade civil por meio da criação de um ambiente propício que permita seu trabalho”. “Reconhecer a sociedade civil e reverter a narrativa negativa, no mais alto nível do Estado, sobre o trabalho da sociedade civil e sua contribuição essencial para o desenvolvimento do país será fundamental para a criação desse ambiente favorável”, insistiu. Segundo ele, a superação dos desafios da discriminação, das profundas desigualdades e da proteção da terra e das comunidades amazônicas, indígenas e marginalizadas exigirá a participação livre e significativa da sociedade civil.