Aliança improvável de Lula e Centrão está saindo

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Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Com raras exceções, não há adversário na política que não possa, com o passar do tempo, tornar-se um aliado. Na campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro demonizou o Centrão, grupo ao qual se rendeu incondicionalmente, já como presidente da República, para garantir um mínimo de estabilidade a seu governo. A parceria deu certo, e hoje o capitão está filiado ao PL, partido de Valdemar Costa Neto, expoente da velha política que Bolsonaro tanto prometeu aos eleitores que combateria. Lula também é um especialista na arte da conciliação. Em seus tempos de oposição, ele chamou José Sarney de ladrão, mas anos depois, quando dava expediente no Palácio do Planalto, disse que o ex-presidente — que o ajudava a domar o então influente MDB — não podia ser tratado como uma pessoa comum. Do então tucano Geraldo Alckmin, Lula ouviu poucas e boas no campo da ética durante anos, o que não o impediu de compor com o antigo rival, que agora é vice-presidente da República. Não há animosidade que resista ao pragmatismo dos políticos. Sem qualquer tipo de constrangimento, o ataque desferido hoje dá lugar a um abraço fraternal amanhã. É tudo uma questão de conveniência — ou de necessidade. A arrastada negociação entre Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é mais uma prova de que quase não há diferenças incontornáveis nessa seara. Os dois estiveram em campos opostos na corrida presidencial passada, não têm relação de amizade e não nutrem simpatia pessoal um pelo outro. A desconfiança impera de lado a lado. Apesar disso, estão cada vez mais próximos de selar uma aliança que pode render dividendos a ambos. Se conseguir compor com Lira, o presidente da República espera incorporar à sua base o Centrão e a massa de deputados liderada pelo comandante da Casa, que é o parlamentar mais poderoso do país. Há menos de um ano, um acerto desse tipo parecia difícil, considerando-se as declarações dadas na época. Na campanha de 2022, Lula disse, por exemplo, que, se ganhasse a eleição, daria um jeito no Centrão e afirmou que Lira agia como se fosse o imperador do Japão. A tensão entre as partes ainda persiste, mas está perdendo força de forma gradativa. Desde o início do mandato do petista, Lira repete que a articulação política do governo é falha e que a base aliada na Câmara está desorganizada. Ele sempre defendeu, como solução para o problema, o receituário tradicional — distribuição de cargos e recursos pedidos pelos congressistas.

Do outro lado do balcão, ministros de Lula seguraram essas contrapartidas quanto puderam, até que os deputados, em reação, ameaçaram derrubar a medida provisória que reestruturava o governo e desenhava o novo ministério. O Planalto se viu obrigado a ceder um pouco, deu início ao empenho de emendas parlamentares (leia a matéria na pág. 32) e passou a negociar a ampliação de espaços de partidos do Centrão na máquina pública. Tudo de forma um tanto quanto arrastada — no modo “enrolation”, dizia-se na Câmara. Lira e companhia nunca consideraram esses gestos iniciais suficientes e, para viabilizar o avanço de pautas prioritárias do governo, passaram a cobrar o comando de pastas de ponta, como a Saúde, e a liberação de 9,8 bilhões de reais do antigo orçamento secreto, que hoje estão sob responsabilidade dos ministérios. Há pelo dois meses a negociação se mantinha mais ou menos nesses termos, sem avançar nem ser engavetada. A situação, porém, começou a mudar em julho, quando a Câmara aprovou a reforma tributária e o projeto que restitui o voto de qualidade a favor da União no conselho administrativo que julga litígios entre o Fisco e os contribuintes, o Carf.

Lira demonstrou mais uma vez que controla as decisões do plenário e que aprova as matérias de interesse do governo se e quando quiser. De quebra, marcou pontos com o establishment, ao dar seguimento a propostas de interesse do país. Apesar do protagonismo do deputado, Lula gostou do resultado. A avaliação positiva do governo no mercado financeiro, por exemplo, deu um salto (leia a matéria na pág. 46). A possibilidade de um acordo, então, ganhou tração. Falta acertar os detalhes. É justamente aí que a desconfiança de lado a lado funciona como um freio. Ao contrário do que queria o governo, Lira colocou em votação a reforma tributária e o projeto do Carf, mas não a proposta do novo arcabouço fiscal, que depende de uma análise derradeira dos deputados, não por acaso adiada para o segundo semestre. O parlamentar e seus colegas de Centrão entenderam que, se entregassem tudo de uma vez ao governo, ficariam sem ativos para mercadejar e correriam o risco de não receber as devidas contrapartidas. A equipe de Lula fez raciocínio parecido. O presidente não compartilhou os ministérios e as estatais reivindicadas, nem distribuiu as verbas do antigo orçamento secreto (na velocidade exigida pelos parlamentares), por considerar que sempre receberá pedidos e, por isso, é preciso dosar nas concessões. Não à toa, Lula declarou que mudanças em cargos de primeiro escalão (com exceção do Turismo), se ocorrerem, serão realizadas a partir de agosto, quando serão retomados os trabalhos do Legislativo. A fatura de Lira e do Centrão é salgada. Há cerca de dois meses, o presidente da Câmara pediu a Lula a demissão do chefe da Casa Civil, Rui Costa, e sugeriu também a exoneração do ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. Os dois continuaram no governo, mas Rui Costa, que era o alvo preferencial da ira, foi obrigado a chamar Lira e o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento, seu adversário político na Bahia, para conversar. Hoje os objetivos dos deputados são mais ambiciosos. Lira e companhia ainda não desistiram de assumir a Saúde, comandada por Nísia Trindade, mas, como parece que dificilmente conseguirão, apresentaram como alternativas os ministérios do Desenvolvimento Social e do Esporte. Eles também querem cargos de comando na Caixa e em órgãos públicos com dinheiro e presença nos municípios, como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Há cobrança ainda para que o governo acelere a liberação das verbas do antigo orçamento.

arte acasalamento

Em troca desses espaços, haveria a adesão de parte das bancadas do PP e do Republicanos à base aliada. Lula, que conta com 140 deputados fiéis, alcançaria a marca de pelo menos 280 dos 513 deputados. Ou seja, a maioria da Casa. “Hoje, dependendo da matéria, 80% da nossa bancada apoia o governo mesmo sem ter nenhum cargo. O partido avalia que algumas matérias são essenciais para o país, como a reforma tributária e o arcabouço”, diz o líder do PP na Câmara, André Fufuca (MA), cotado pela legenda para substituir o petista Wellington Dias no Ministério de Desenvolvimento Social. Presidente do PP e ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira afirma que não vetará a nomeação de colegas para o governo, mas que não haverá adesão formal da sigla a Lula. Ele acrescenta que eventuais embarques de correligionários na base aliada têm de ser creditados à ação de Lira. “A base do governo depende do Arthur. Acho que ele quer se livrar dessa responsabilidade de toda hora ter de convencer os deputados a votar. Tudo o que foi aprovado foi graças única e exclusivamente ao apelo do Arthur”, declara o senador.

Numa entrevista recente, Lula admitiu estar conversando com Republicanos e PP. Também está encaminhada a substituição da ministra do Turismo, Daniela do Waguinho, pelo deputado Celso Sabino, uma troca reivindicada pelo União Brasil. De acordo com Elmar Nascimento, que, além de líder da sigla, é braço direito de Lira e candidato à sucessão dele no comando da Câmara, a entrada do presidente da República nas negociações foi fundamental para destravá-las. “Sempre que o presidente entra em campo, as coisas melhoram. O governo, de fato, começou meio bagunçado, mas agora parece que vai engrenar”, declarou. Sob a proteção do anonimato, outro ponta de lança do time de Lira ressalta que a costura da aliança está bem encaminhada, mas só será sacramentada com a efetiva distribuição de cargos e recursos. “O único órgão confiável é o Diário Oficial da União”, diz. Além das moedas de troca habituais, tem peso decisivo no bailado político de Lula e Lira a investigação que apura se houve crimes de fraude em licitação na compra de equipamentos de robótica por municípios alagoanos, inclusive com emendas indicadas pelo presidente da Câmara. Um dos assessores mais próximos do deputado foi alvo de uma ação da Polícia Federal, o que levou os advogados de Lira a pedir a suspensão da investigação, sob a alegação de que o alvo verdadeiro, mesmo que oculto, era o próprio parlamentar. Por isso, o caso deveria tramitar não na primeira instância, como ocorria, mas no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes concordou com a tese e suspendeu a investigação. A vitória judicial momentânea não foi suficiente para acalmar totalmente Lira. Em conversas reservadas, ele culpa o ministro da Justiça, Flávio Dino, pela ofensiva da PF sobre seu assessor e alega que o objetivo era atingi-lo. Por enquanto, restringe as críticas a Dino e poupa Lula, dando ao presidente o benefício da dúvida. Em seu terceiro mandato presidencial, Lula sabe muito bem que não vale a pena comprar briga com o presidente da Câmara. Dilma Rousseff não tinha o mínimo de apreço por Eduardo Cunha e, por mais que bombeiros tentassem ajudar, fracassou na costura de um acordo de proteção mútua entre eles. O resultado é conhecido: Cunha abriu o processo de impeachment de Dilma e depois perdeu a presidência da Casa e a liberdade, passando uma temporada preso.

Cientes do precedente, Lula e Lira sonham com um jogo totalmente diferente, de ganha-ganha. A reta final dos trabalhos no primeiro semestre na Câmara mostrou ao presidente que um acordo com políticos de centro ajuda a destravar projetos prioritários ao país. Lira e o Centrão também lustram a própria imagem porque, quanto mais contribuem para a modernização do país, menos críticas recebem pelo fisiologismo. No chamado presidencialismo de coalizão brasileiro, os mandatários são compelidos a distribuir cargos e recursos orçamentários em troca de apoio no Congresso. É do jogo e faz parte da estratégia para garantir a chamada governabilidade e a aprovação de projetos. O problema não está nesse modelo, mas no uso que os políticos e seus afilhados fazem da máquina pública, que já resultou em escândalos monumentais de corrupção, como o mensalão e o petrolão. Quando Jair Bolsonaro se acertou com os congressistas, entregando-lhes ministérios e o orçamento secreto, Lula e os partidos de esquerda denunciaram com contundência o que chamaram de toma lá dá cá desavergonhado. Na campanha, esse discurso teve forte apelo nas redes sociais. Agora, o mesmo tipo de negociação, com as mesmas moedas de troca, não está causando as mesmas reações. As críticas ao fisiologismo foram substituídas por menções — acertadas — ao pragmatismo e à necessária formação de uma base de sustentação no Congresso. A aproximação do Executivo e do Legislativo está sendo vista com mais naturalidade — e assim deve ser. As negociações que levaram à aprovação de projetos importantes para o país nos últimos seis meses provaram o que democracias mais maduras descobriram há muito tempo: não se avança sem entendimento e concessões. O contrário disso é uma receita para o fracasso.

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