Cassação de Bolsonaro foi recado a toda classe política
Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo
No julgamento em que decretaram a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mandaram diversos recados tanto ao ex-chefe do Executivo quanto a futuros candidatos que possam cometer as mesmas infrações. Os magistrados deixaram claro mais uma vez, por exemplo, que ataques infundados ao sistema eleitoral são passíveis de punição.
Os ministros também alertaram contra o uso da máquina pública em favor de uma tentativa de reeleição e ressaltaram o risco de degradação da democracia. Além disso, mesmo os magistrados que votaram de forma favorável a Bolsonaro também defenderam a lisura das urnas eletrônicas e ressaltaram que não há registro de fraudes.
Bolsonaro foi condenado por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, devido a uma reunião com embaixadores no ano passado. Na ocasião, ele fez ataques infundados ao sistema eleitoral brasileiro. O foco dos cinco ministros que votaram pela condenação foi justamente o conteúdo mentiroso do discurso feito aos representantes estrangeiros.
O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, ressaltou que a Corte já havia determinado que a desinformação sobre o sistema eleitoral era passível de cassação e inelegibilidade. Os parâmetros foram estabelecidos em dois casos: a cassação do deputado estadual Fernando Francischini (PSL-PR), por divulgar notícias falsas sobre urnas, e a absolvição da chapa do próprio Bolsonaro na eleição de 2018 por disparo em massa de mensagens.
De acordo com Moraes, nenhum candidato poderia declarar surpresa, muito menos Bolsonaro, porque um dos casos envolveu ele mesmo.
— E foi muito importante a fixação desses parâmetros, como é muito importante a reafirmação desses parâmetros no julgamento de hoje. Foi importante para as eleições de 2022 e será importante para as eleições de 2024, 2026 e assim por diante. Para que pré-candidatos e candidatos não se utilizem dos seus cargos públicos para disseminar notícias fraudulentas sobre o sistema eleitoral — afirmou Moraes no julgamento de sexta.
Relator da ação, Benedito Gonçalves foi além e afirmou que as atitudes de Bolsonaro “transbordam” o que havia sido definido no julgamento de Francischini:
— A verdade é que os ilícitos comprovados neste feito em tudo transbordam os critérios que haviam sido aplicados naquele julgamento, e me levam a ter que recorrer a termos contundentes, que reflitam a gravidade de tudo o que foi apurado.
Já o ministro Floriano Marques rebateu a ideia de que as declarações de Bolsonaro na reunião não foram graves o suficiente para justificar a inelegibilidade:
— O que pode ser mais grave no agir de um chefe de Estado que, visando a objetivos eleitorais, mobilizar o aparato da República para passar internacionalmente a ideia de que as eleições brasileiras não são limpas? — questionou.
Mesmo Nunes Marques e Raul Araújo, que votaram pela improcedência da ação, destacaram que não há provas de fraude
— O voto eletrônico, que como sabemos vai muito além da urna eletrônica, é a experiência mais bem-sucedida e executada por todo o Judiciário brasileiro — disse Nunes Marques. — Ouso e me orgulho a dizer que, no tocante à recepção, apuração e divulgação de votos, nosso sistema é o mais avançado do mundo.
Araújo, por sua vez, elogiou “a incansável atuação do Tribunal Superior Eleitoral e de toda a Justiça Eleitoral na condução de campanha pública na defesa da integridade do processo eleitoral” e afirmou que Bolsonaro divulgou “informações inverídicas sobre o sistema eletrônico de votação”
André Ramos Tavares afirmou que o então presidente construiu uma “versão fabricada” dos fatos ao citar supostas fraudes.
— O investigado, em suma, a partir da ocorrência de algum fato verdadeiro, forja outros fatos que efetivamente jamais ocorreram para alcançar conclusões que não poderiam deixar de ser igualmente inventivas e não decorrências lógicas de alguns poucos fatos reais.
Outro ponto citado diversas vezes foi o desvio de finalidade realizado por Bolsonaro, ao utilizar uma residência oficial da Presidência — o Palácio da Alvorada — e um canal público de televisão, a TV Brasil. Isso porque, além dos ataques, o então chefe do Executivo também teria feito propaganda eleitoral antecipada, ao se autopromover e ao criticar seu principal adversário na disputa, o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
— Me convenci de que ele (o discurso) teve claro objetivo eleitoral, não no sentido apenas de questionar o processo eleitoral sem provas e evidências consistentes, mas de angariar proveitos eleitorais na disputa de outubro em desfavor de seus concorrentes, desequilibrando a disputa com o peso do poder político — avaliou Floriano Marques.
Moraes definiu o discurso de Bolsonaro como um “monólogo eleitoreiro”:
— Algo eleitoreiro, monólogo eleitoreiro. Pauta da reunião definida exclusivamente pelo primeiro investigado, então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Uma pauta dele, pessoal, eleitoral. Em um período, repito, a dois meses e meio faltando para o primeiro turno das eleições.
Benedito Gonçalves classificou o evento como “desvio eleitoreiro” e “episódio aberrante” e afirmou que os bens da Presidência “não são passíveis de apropriação”.
— Bens, serviços e prerrogativas da Presidência da República não são passíveis de apropriação pelos sempre temporários ocupantes da cadeira. Tudo o que se coloca à disposição da pessoa eleita tem por finalidade estrita o desempenho de um mandato em nome de toda a sociedade.
Cármen Lúcia ressaltou o fato de Bolsonaro ser um servidor público:
— A crítica (ao Judiciário) faz parte. O que não pode é um servidor público, no espaço público, com equipamento público, com divulgação pela EBC e pelas redes sociais oficiais, fazer achaques contra ministros do Supremo como se não tivesse atingido a própria instituição.
Os ministros também alertaram sobre os riscos à democracia. André Ramos Tavares, por exemplo, frisou que o uso recorrente de afirmações falsas causa uma desconfiança na população:
— O ataque decorrente das afirmações falsas, portanto, não é aleatório nem fruto de pequenos equívocos. Trata-se de estratégia que tem a capacidade de desestruturar a democracia. Ela mina a confiança do cidadão em dados e metodologias sérias e científicas — apontou.
Cármen Lúcia citou o conceito de “consciência de perverter”, descrito por ela como a “consciência de saber que não tem razão e ainda sim expor como se tivesse, sabendo que não a tem”, e afirmou que Bolsonaro agiu dessa forma e que por isso colocou em risco a democracia.
— Essa consciência de perverter faz com que não apenas o ilícito tenha acontecido, colocando em risco a normalidade, a legitimidade do processo eleitoral e, portanto, da própria democracia, mas isso foi divulgado, ou seja, com o uso indevido dos meios de comunicação para solapar a confiabilidade de um processo sem o qual nós não teríamos sequer o Estado de Direito.
Os exemplos de países como Venezuela e Hungria, que passam por um processo de degradação constitucional, foram citados por Floriano Marques:
— À esquerda e à direita, temos assistido líderes interferirem na higidez das eleições mediante o próprio esvaziamento da legitimidade e da adesão aos pleitos. Seja na Venezuela ou na Nicarágua, seja na Polônia ou na Hungria, tem sido comum os incumbentes desincentivarem a participação eleitoral, fazendo crer trata-se de um jogo viciado e com isso extrair vantagem do fato de ser o detentor da máquina governamental.