Volta de relações com Venezuela fará país pagar BNDES
Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
Passados quase 40 dias desde que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou a criação de um grupo de trabalho para “consolidar” a dívida bilionária da Venezuela com o Brasil, as cifras devidas pelo regime de Nicolás Maduro ainda são uma incógnita. Neste intervalo, segundo a pasta, foi realizado apenas um encontro preparatório para a criação da mesa de negociações com o país vizinho.
A reunião, que ocorreu no último dia 16, contou com a participação de representantes da Fazenda, do Itamaraty, da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que é o principal credor da Venezuela em razão da concessão de empréstimos para obras e serviços conduzidos por empreiteiras brasileiras nos governos petistas.
Na última quarta-feira (5), o subprocurador-geral do Ministério Público Junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU), Lucas Rocha Furtado, entrou com uma representação na corte contábil para que o TCU acompanhe as negociações entre o Brasil e a Venezuela no âmbito da inadimplência da nação vizinha junto ao BNDES.
Na peça, Furtado manifesta preocupação quanto à possibilidade de que a dívida não seja cobrada da forma devida pela “proximidade” de Lula com o regime de Maduro e outros países que também devem ao governo brasileiro, como Cuba. Por essa razão, o subprocurador-geral defende ser necessário que o tribunal acompanhe as tratativas.
Até novembro de 2022, documentos do governo brasileiro elaborados na gestão de Jair Bolsonaro indicavam que a dívida somava US$ 1,14 bilhão – o equivalente a R$ 5,5 bilhões na cotação atual. Desde então, o valor está sujeito à cobrança de juros e mora.
Procurada pela equipe do blog, a assessoria da pasta chefiada por Haddad informou que estão em curso consultas técnicas entre os órgãos envolvidos para definir “a conciliação dos valores da dívida”. A Fazenda afirmou ainda que o governo venezuelano seria consultado sobre a data da instalação da mesa de negociação.
O tema será tratado no Comitê de Avaliação de Créditos ao Exterior (Comace), que migrará da Camex para a Fazenda e contará, além dos órgãos já citados, com as secretarias de Assuntos Internacionais, do Tesouro Nacional, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Pelo ritmo dos trabalhos, não se sabe se o governo avançará na negociação a tempo da cúpula da Organização do Tratado da Cooperação Amazônica (OCTA), que se reunirá em agosto em Belém. Como publicamos na última segunda-feira, Maduro foi convidado junto de outros presidentes de países que integram a entidade e poderá visitar o Brasil pela segunda vez neste ano.
Na primeira ocasião, em 29 de maio, a questão da dívida foi comentada publicamente por Fernando Haddad. Horas depois de Lula receber o líder venezuelano em uma cerimônia pomposa em Brasília para uma cúpula dos países sul-americanos, o ministro confirmou a intenção da Fazenda de “consolidar” a dívida para “reprogramá-la” – em outras palavras, atualizar seus valores.
Naquela mesma data, Maduro disse a jornalistas que o grupo de trabalho estabeleceria “a verdade” – sugerindo implicitamente não reconhecer a cifra estimada no governo Bolsonaro.
O valor de US$ 1.114.502.940,35 consta de uma carta encaminhada pela Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do então Ministério da Economia à representação da Venezuela no Brasil na ocasião.
A cobrança era encaminhada a cada três meses desde ao menos 2020 para a embaixadora Maria Teresa Belandría, indicada por Juan Guaidó, líder opositor que se autoproclamou presidente venezuelano até janeiro deste ano.
A dívida se acumula desde 2017, quando a Venezuela começou a deixar de pagar parcelas de empréstimos e outros serviços de empresas brasileiras. No ano anterior, o país caribenho havia rompido relações com o Brasil após o impeachment de Dilma Rousseff e não reconheceu a presidência de Michel Temer.
O endividamento se manteve após a posse de Bolsonaro, em 2019. A relação entre os países continuou rompida e a tensão escalou após o então presidente brasileiro reconhecer, ao lado de dezenas de chefes de Estado estrangeiros, a autoridade de Guaidó. Na visita a Brasília no fim de maio, Maduro atribuiu a suspensão do pagamento das parcelas à ruptura das relações diplomáticas com o Brasil.
Embora se refiram em parte a serviços contratados de companhias privadas, o ônus recai sobre os cofres públicos. Isso porque, no caso de um país parceiro não honrar suas dívidas com uma empresa brasileira, é o Estado brasileiro que arca com o rombo.
É o caso da Venezuela, que deu calote em obras executadas pela Odebrecht e Andrade Gutierrez – entre as quais três linhas do metrô de Caracas e outra do metrô de Los Teques, cidade nos arredores da capital venezuelana, serviços que a primeira empreiteira deixou incompletos. Há ainda contratos com o grupo JBS e a Embraer a serem pagos pelo tesouro brasileiro.
Até pagar suas dívidas, a Venezuela não pode contrair novos empréstimos nem buscar crédito junto ao Brasil. Lula, que defendeu o aporte de dinheiro no país caribenho durante a campanha de 2022 e tem relativizado o autoritarismo do regime de Caracas, não poderá ajudar o herdeiro de Hugo Chávez até que a situação seja normalizada.
Resta saber como se dará o processo de “consolidação” e “reprogramação”, como definiu Haddad em maio, e se o estabelecimento da “verdade” evocada por Nicolás Maduro representará algum tipo de anistia. Até agora, não há pistas de como o cálculo será feito e nem quando os trabalhos serão concluídos.