Bancada da Bíblia tenta impedir educação sexual no ensino

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Foto: Klaus Vedfelt/Getty Images

Muitas guerras de fundo ideológico vêm sendo travadas no polarizado cenário político brasileiro. A batalha da vez gira em torno da educação sexual nas escolas, assunto que merece um debate elevado, dada sua relevância para a vida de crianças e adolescentes. Largamente adotadas em nações desenvolvidas, onde são obrigatórias, as aulas que englobam orientação em relação a infecções sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e o conhecimento do próprio corpo ingressaram apenas em 1998 no Brasil e, mesmo assim, como uma recomendação do MEC para que fossem incluídas no currículo de ciências. Uma década depois, virou pré-­requisito para o repasse de verbas aos municípios no escopo do programa federal Saúde na Escola — condicionalidade que o governo de Jair Bolsonaro tratou de excluir, em 2019, deixando a iniciativa limitada às questões da boa alimentação e do combate ao sedentarismo e à obesidade. Os municípios que não quisessem tocar no tema não o faziam, e ponto-final. Agora, o ministério acaba de anunciar que a antiga regra está de volta e, para obter dinheiro do Saúde na Escola, cujo orçamento é superior a 90,3 milhões de reais, será necessário ensinar educação sexual à garotada a partir deste ano — medida que instantaneamente incendiou as redes e pôs a ala conservadora do Congresso a tecer costuras para derrubá-la, em mais uma queda de braço ideológica que passa ao largo do que é cientificamente comprovado. O que atiça ainda mais as labaredas é que a decisão, tomada pela pasta da Saúde, impacta diretamente no bolso dos 99,9% de prefeituras que aderiram ao programa lá atrás.

A reação conservadora envolve parlamentares evangélicos, que se aliaram à bancada católica pró-vida para tentar barrar a medida via um Projeto de Decreto Legislativo (PDL), já apresentado à Câmara. Na linha de frente, estão a deputada Chris Tonietto (PL-RJ), da ala católica, e Marcos Feliciano (PL-SP), um dos mais barulhentos na banda evangélica. “A escola ensina, mas quem educa são os pais. Vão sexualizar as nossas crianças”, dispara Feliciano, repisando um velho argumento sem amparo em evidências. Ele vem se empenhando em angariar apoio também dos Republicanos, partido ligado à igreja Universal — prestes, aliás, a integrar a base do governo. “Muitas famílias não têm condição de orientar seus filhos, por isso precisamos da presença do Estado para garantir essa educação”, rebate a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP). Neste momento, o ministério prepara material didático de apoio em parceria com entidades internacionais, como Unicef e Unesco. Cada rede de escolas terá liberdade para definir o formato das aulas e a linguagem que adotará para as diferentes faixas etárias. Mesmo com brechas que não impõem aos municípios uma camisa de força, porém, a ação esbarra em um paredão conservador que já se anunciava antes. Nos últimos tempos, várias prefeituras aprovaram leis para impedir que qualquer discussão sobre sexualidade chegasse às carteiras escolares. Um levantamento da Human Rights Watch identificou 217 iniciativas do gênero. Pelo menos vinte foram aprovadas, entre elas as de cidades como Caucaia (CE) e Duque de Caxias (RJ). Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que defendeu legislação semelhante como vereador, já sinalizou a intenção de deixar o programa, apesar do repasse de 1,3 milhão de reais aos cofres da cidade só em 2023.

Há quem aposte em enrosco jurídico no horizonte. Para este ano, os recursos estão garantidos, mas em 2024 serão cortados caso as novas condições não sejam atendidas. “Se for uma imposição do governo federal, sem participação das famílias e da comunidade escolar, ficará aberto um cenário para contestações nos tribunais”, acredita Washington de Sá, ex-­diretor da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente na gestão Bolsonaro, hoje presidente da Rede Internacional Infância Protegida. O freio de mão conservador se baseia em argumentos falaciosos que funcionam como obstáculos a um ensino pleno. Um deles é a ideia de que seria um impulso à sexualização precoce e um acelerador a uma etapa que deveria ocorrer só na vida adulta, de preferência apenas após o casamento. Estudos internacionais sérios vêm mostrando justamente o contrário — alunos que recebem educação sexual tendem a postergar o início dos relacionamentos, costumam ter menos parceiros ao longo da vida, contraem menos doenças sexualmente transmissíveis e utilizam mais métodos contraceptivos. Para as meninas, percebe-se ainda outro bem-vindo efeito: caem as chances de engravidarem na adolescência. “Muitos pais têm medo de que a educação sexual leve os filhos a uma vida promíscua, quando se trata, isso sim, de uma medida de proteção da infância”, explica Carolina Campos, CEO da ONG Vozes da Educação. O grande desafio, dizem os especialistas, é adequar a linguagem a cada faixa etária. Na Holanda, referência mundial na área, o trabalho começa com turmas do ensino infantil, experiência já replicada em algumas escolas da rede particular no Brasil. A guerra ideológica adentrou com força o terreno da educação no governo Bolsonaro, que agitava a bandeira de banir “esquerdismos da cartilha”. Sob influência da bancada evangélica e de discípulos do ensaísta e astrólogo Olavo de Carvalho, o MEC alterou o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para suprimir vocábulos tais como “respeito à diversidade”, interferiu no Enem para evitar questões relacionadas a gênero e ditadura militar e centrou energia na aprovação da proposta de homeschooling, para permitir que a educação transcorra em casa e, assim, escape de uma suposta “doutrinação marxista”. O debate em torno da educação sexual está sendo levado a um ringue semelhante. Que seja guindado de lá para se dar nas bases sérias que o assunto requer.

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