Bolsonarismo reviveu operações policiais de vingança

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Foto: Rovena Rosa

Quando chegou ao quartel a notícia do fuzilamento de quatro policiais militares por traficantes, mais de 50 agentes decidiram pôr máscara no rosto para praticar a vingança. Na noite do domingo 29 de agosto de 1993, um dia depois das mortes dos colegas, os mascarados entraram em Vigário Geral, na Zona Norte do Rio, e começaram a disparar contra as pessoas que estavam numa praça na entrada da comunidade.

O estudante Fábio Pinheiro Lau, de 17 anos, o metalúrgico Hélio de Souza Santos, 38, o gráfico Cléber Alves, 23, e o mecânico Edmilson Costa, 23, Clodoaldo da Silva, 23, e Amarildo Baiense, 31, foram os primeiros a serem crivados de balas.

Depois, no Bar do Caroço, onde torcedores ainda comemoravam a vitória da Seleção por 6 a 0 contra a Bolívia, os mascarados lançaram uma bomba. No meio da fumaça que ardia os olhos, mais tiros foram dados. O aposentado Joacir Medeiros, 58, dono do bar, caiu morto, assim como o ferroviário Adalberto de Souza, 40, o enfermeiro Guaracy Rodrigues, 33, o serralheiro José dos Santos, 47, o motorista Paulo Roberto Ferreira, 25, o metalúrgico Luís Feliciano, 28, e Paulo César Soares, 35.

A poucos minutos da meia-noite, alguns dos mascarados entraram na casa em frente, onde morava uma família de evangélicos. Jane, 54, e Gilberto, 61, tinham acabado de chegar do culto. Um dos mascarados pediu documento a Luciano, 23, filho do casal. Após mostrar a carteira de trabalho, o jovem foi morto, assim como suas irmãs, Lucinéia, 24, Lúcia, 33, Lucilene, 15, e Lucinete, 27. Rúbia, 18, mulher de Luciano, também recebeu tiro fatal. Jane foi executada em seu quarto com uma Bíblia na mão.

A menina Núbia, de 10 anos, filha de Luciano, pôs um lençol na cabeça. “Vamos matar as crianças”, disse um dos mascarados. “Não, elas não têm nada a ver com isso”, respondeu outro. Núbia ouviu o diálogo. Ela e outros quatro menores foram deixados vivos, entre os corpos estraçalhados dos adultos.

A operação terminou com 21 mortos – não tinham relação com o tráfico e os assassinatos dos policiais. O que ocorreu em Vigário Geral marcou memórias individuais e coletivas. A prática de vingar assassinatos de agentes com a matança de inocentes permaneceria como uma história em andamento.

No mandato do atual governador do Rio, Cláudio Castro (PL), forças policiais promoveram as chacinas de Jacarezinho, em maio de 2021 (28 mortos, incluindo um policial), Vila Cruzeiro, em maio de 2022 (24 mortos), e Alemão, em julho do ano passado (18 mortos). Em São Paulo, a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) já é marcada por uma operação no Guarujá, deflagrada no último dia 28 de julho, após a morte de um policial, que contabiliza 22 mortes. Na Bahia, quase no mesmo período, o governo de Jerônimo Rodrigues (PT) realizou operações que mataram duas dezenas de adolescentes e jovens entre 13 e 23 anos.

Castro chamou os mortos do Jacarezinho de “vagabundos” e negou a chacina na Vila Cruzeiro. “Vocês não me viram celebrando morte de ninguém. Só que quem aponta uma arma para polícia aponta uma arma para a sociedade, para cada um de nós. Não tem aspecto de chacina nenhuma”, disse. Ele tentou justificar as mortes pelos antecedentes criminais das vítimas – só esqueceu de ponderar que quem comete um crime deve ser processado e julgado. O governador omitiu ainda que a lista de mortos incluía moradores sem ligação com o crime, como Gabrielle Ferreira da Silva, 41, da Vila Cruzeiro, e Caio da Silva, 17, do Jacarezinho.

Tarcísio de Freitas também saiu em defesa da operação no Guarujá. “A gente tem uma polícia extremamente profissional que sabe usar exatamente a força na medida em que ela precisa ser utilizada. Não houve hostilidade, não houve excesso, houve uma atuação profissional e que resultou em prisões”.

Os governadores dos três dos estados mais importantes do País são de uma nova leva de políticos, da direita à esquerda. Não dá para dizer que eles inventaram operações de vingança ou polícias que executam pessoas e depois consultam os arquivos criminais. Mas chama a atenção a continuidade de uma política e discursos que tratam com muita naturalidade a matança de pessoas.

É preciso observar, claro, que não se esperava outra forma de atuação da polícia paulista no mandato de um governador eleito com a ajuda de Jair Bolsonaro. O que causa surpresa mesmo é a falta de contraponto a essa política contra a humanidade na área da segurança pelo campo ideológico que, no discurso, se apresenta como antagônico.

O petista Jerônimo Rodrigues fez a defesa da matança recente da polícia baiana com um ataque a um profissional que é ícone da reportagem brasileira. “Respeitem a nossa polícia militar, o que vocês estão fazendo com a polícia militar é irresponsabilidade”, disse o governador referindo-se ao repórter Caco Barcellos, que esteve na Bahia para contar o que estava acontecendo. “O que nós vimos, com a televisão vindo aqui fazer, aquilo parecia que era encomenda, foi uma encomenda”, bradou Rodrigues. “É uma polícia de 200 anos.”

Talvez o governador quisesse sugerir que os brasileiros voltem a abrir os livros para saber o que a Polícia Militar da Bahia fez em Canudos, de 1896, quando uma tropa bem armada foi dispersada por sertanejos pobres que só queriam plantar suas roças, cuidar de seus pequenos e seus bichos e rezar sob o comando do beato Antonio Conselheiro – a lambança da polícia e do governo baianos empurrou o Exército brasileiro para uma dos capítulos mais trágicos de sua história. Aliás, a PM no Estado tem na sua origem a repressão a levantes de escravizados.

Mais recentemente, um grupo de elite da polícia baiana cercou a casa onde estava o capitão Adriano, homem que muito sabia sobre crimes no Rio, em 2021, e o desfecho da história ainda não foi explicado. A estreia de Jerônimo no primeiro escalão da política brasileira ainda foi marcada por uma declaração que desprezou o caráter político do assassinato de uma liderança quilombola e religiosa. Ele disse que Mãe Bernadete morreu em consequência de disputa de facções criminosas. Reacionários de plantão costumam achar que o crime está léguas de distância da política.

Depois de quatro anos de Jair Bolsonaro no comando da República, um presidente que fez da morte uma política de governo, Jerônimo Rodrigues é o que o PT e a esquerda brasileira têm para apresentar na área da segurança pública ao País?

No dia 10, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reclamou, num evento com Cláudio Castro, no Rio, da morte de uma criança numa operação policial. Os cariocas souberam o que seu presidente pensa sobre o que ocorre no Estado. O Brasil poderia saber também o que Lula acha de seu colega de partido, Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia.

Aliás, Lula premiou um “xerife” especializado em carnificina com um dos cargos mais importantes da Esplanada. No mandato do governador e atual ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, policiais também sem máscaras entraram no bairro do Cabula, em Salvador, em fevereiro de 2015, e executaram 12 jovens em represália à morte de um agente. Os assassinados não tinham relação com o crime. O comentário de Costa sobre a emboscada tornou-se emblemático quando se analisa os novos nomes da esquerda. “É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol”, comparou. “Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito ou jogado daquele outro, a bola teria entrado.”

A metáfora do futebol não se adequa a crime premeditado. A matança no Cabula foi planejada. Rui Costa havia acabado de capturar o discurso cruel, cômodo, fácil e enganoso de que polícia eficiente é aquela que mata.

Nas ruas dos centros das cidades ou mesmo nas áreas de risco, os brasileiros não escondem a frustração com o fracasso do Estado no combate às facções, o clima de insegurança e o medo. As operações de vingança são aplaudidas – e continuam País afora. A violência muito menos parece acabar.

Essas operações costumam compensar falta de discursos de ações de planejamento concretas para garantir a segurança pública. Permitir ou dar apoio a tropas que executam mesmo quem apresenta carteira de trabalho talvez renda resultados mais imediatos nas pesquisas de popularidade que o esforço por investimento em pessoal, serviços de inteligência e, sobretudo, programas de inclusão.

Na Bahia, um soldado recebe inicialmente menos de cinco mil reais. É assim também no Rio e em São Paulo. Os governadores demonstram distância do debate sobre melhoria de condições de vida dos agentes e outros tantos temas da área. Salário pode não ter relação direta com chacina, mas tem a ver com política de segurança.

Além do absurdo de tirar vidas, as operações de vingança, sem máscaras, revelam marketing da morte e diversionismo. Os velhos esquadrões da morte com seus crimes que causavam comoção nacional antigamente agora são tratados como tropas eficientes. É angustiante saber que não há uma grande força política para reagir a mais um refluxo do Brasil no tempo.

Em Vigário Geral, comunidade da Zona Norte do Rio, um grupo de policiais mascarados matou 21 moradores para vingar a morte de quatro colegas de farda. As vítimas não tinham relação com o crime.

Estadão