Filme retrata homofobia psicótica de Margareth Tatcher

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Foto: Reprodução

Uma professora de educação física do ensino médio na Inglaterra de 1988 vive uma vida dupla: Jean, interpretada primorosamente por Rosy McEwen, é lésbica, mas sente a necessidade de se manter no armário perante os colegas para manter seu emprego. A decisão é óbvia, visto que se trata do Reino Unido sob o comando do Partido Conservador liderado por Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, que acaba de aplicar uma lei de repressão contra a comunidade LGBTQIA+, a Seção 28, que proíbe completamente a ” promoção de homossexualidade nas ruas e nas escolas”. Namorada de uma lésbica orgulhosa de si, Viv (Kerrie Hayes), Jean vê seu segredo ameaçado com a chegada da aluna nova Lois (Lucy Halliday), que também é homossexual e não tem com quem conversar a respeito disso. Na trama delicada e tocante de Blue Jean (em cartaz nos cinemas brasileiros), a diretora Georgia Oakley resgata as medidas autoritárias e homofóbicas que tomaram o Reino Unido no passado e que ainda assombram a Europa até hoje. Em entrevista a VEJA, a diretora inglesa de 35 anos fala sobre sua inspiração para o filme indicado ao BAFTA e vencedor do prêmio do público no Festival de Veneza e de suas próprias experiências vivendo sob o governo Thatcher.

A Europa sempre teve ondas conservadoras e vemos que a realidade atual não está tão distante assim dos anos 1980 de Blue Jean — Pádua, na Itália, recentemente retirou nomes de mães lésbicas das certidões de nascimento de filhos adotados, sob nova legislação aprovada pelo governo da primeira-ministra, Giorgia Meloni. Como enxerga o fato de que a repressão contra a comunidade LGBTQIA+ ainda persiste na sociedade atual? Sim, é muito interessante porque quando comecei a escrever o filme em 2018 eu estava muito focada no fato de que, na minha opinião, não havia mudado muito, porque olhava as notícias e via que havia protestos em frente a algumas escolas de Londres que queriam que seus filhos comemorassem o Mês do Orgulho LGBTQIA+, mas havia pais que tiraram seus filhos da escola porque não queriam que eles fizessem isso. E quando eu apresentei a ideia o filme, senti que houve muita resistência, muitas pessoas presumindo que este era um filme sobre algo que aconteceu há muito tempo e que não seria mais relevante agora, me questionando se nós realmente precisávamos trazer esse pedaço da história de volta… E eu estava dizendo: ‘Não, olhe para o que está acontecendo na Flórida’ — sobre a lei Não Diga Gay, do republicano Ron DeSantis. E eu senti na época que meu produtor e eu sentimos como se estivéssemos tendo que apresentar esses fatos às pessoas, para mostrar que a história ainda era relevante hoje.

Imaginava que poderia traçar esses paralelos com a vida real atual? Obviamente, não há como prevermos ou, pelo menos, sou muito otimista para prever a maneira como as coisas se desenrolariam nos últimos cinco anos para chegar onde estamos hoje, com o que está acontecendo na Itália e nos EUA, na Espanha também, é meio sem precedentes e não teria como prever. Não senti que precisava desse contexto para poder contar o filme e para que fosse importante para as pessoas, mas acontece que é isso que está acontecendo e agora acho impossível assistir Blue Jean e não pense nesses paralelos enquanto comecei a escrevê-lo. Foi talvez um pouco mais tênue. Então, sim, é muito deprimente. Eu realmente não sei como descrever esse sentimento.

Durante o processo de fazer este filme, mesmo com essa força dos movimentos do Orgulho em todo o mundo, ficou nervosa ou com medo de retaliação a Blue Jean? Eu não senti medo de retaliação porque estava morando em Londres na época em que produzi o filme, então estava convivendo dentro de uma bolha muito progressista e todas as pessoas com quem trabalho na indústria cinematográfica fazem parte dessa bolha. Curiosamente, eu tive que mostrar para meu círculo que fora dessa zona de conforto tinha muita coisa acontecendo, que houve pouco progresso. Por exemplo, várias vezes enquanto estávamos filmando sofremos abuso homofóbico nas ruas. Acho que até fiquei surpresa, assim como vários membros da nossa equipe, sobre o quão presente esse sentimento de raiva. Além disso, queríamos lançar o filme em tantos cinemas, mas na verdade muitos cinemas disseram que não queriam exibi-lo porque os proprietários são conservadores. Eu sabia que o filme não seria exibido em certos países, mas não havia pensado muito em quanto a política atual afetaria. Eu tenho lutado bastante para provar que esta história não é nichada, mas eu realmente não refleti tanto sobre o que aconteceria quando ele finalmente fosse lançado.

Blue Jean tem uma adolescente homofóbica, a Siobhan (Lydia Page), exemplificando como o preconceito não depende necessariamente de idade. E ela faz uma coisa terrível no filme, mas consegue se livrar de punições. Você pensou em castigá-la na história de alguma forma? É interessante, porque a Siobhan é um dos efeitos indiretos da Seção 28, que tirou dos jovens a oportunidade de serem livres para experimentar da maneira que deveriam ter sido capazes, e eu fui um desses alunos, eu estava na escola durante a Seção 28, e aquela época não era como o que vejo agora, com os adolescentes explorando saudavelmente sua sexualidade. Naquela idade, simplesmente não era permitido da mesma forma que é agora e então não vejo tanto isso de que a Siobhan fez algo terrível e saiu impune. Na minha opinião, todos esses personagens estão sendo empurrados para baixo pelo mesmo sistema. Eles são todos o produto no mesmo sistema e todos estão fazendo o que acham que é certo no momento como resultado desse sistema e que o vilão da história é a política. O verdadeiro vilão não é nenhum indivíduo do filme, eles estão todos fazendo o seu melhor, mas a razão pela qual eles tomam certas atitudes é por causa do sistema do qual eles fazem parte.

Quando você começou a filmar Blue Jean, havia uma cena ou um diálogo específico que você não queria deixar de fora do filme? Bem, uma resposta para isso é que havia quando eu estava desenvolvendo esta história, houve um pedido de alguns dos produtores-executivos para que eu colocasse uma cena entre Jean e Lois, em que a Jean meio que explica por que ela se comportou da maneira que ela se comportou e eu fui muito resistente a isso e por muito tempo. Eu não queria fazer isso, mas escrevi a cena de qualquer forma. Então, Rosie McEwan fez o teste para Jean e ela escolheu aquela cena específica para sua audição. É o diálogo em que Jean diz: ‘As pessoas falharam comigo, e agora eu falhei com você, Lois’. E quando ela falou como Jean, de repente aquela cena passou de uma cena que eu estava realmente relutante, que eu não tinha certeza se queria manter, à cena que não só resume todo o filme, como me deixa mais orgulhosa. Foi ótimo gravá-la, porque pude ver o quando Rosie estava preparada para aquela cena desde sua primeira audição, um ano antes.

Você não queria escrever essa cena por medo de que soasse inapropriado as duas, uma professora e uma aluna, estarem conversando de forma tão íntima e profunda? Sim, e eu não queria ter que escrever uma cena em que o personagem principal explicasse exatamente o que sente. A Jean é muito difícil de ler e ela mesma não entende por que ela se comporta como ela se comporta.

Como mencionou, você era aluna durante a Seção 28. Chegou a colocar experiências próprias em Blue Jean ou situações que testemunhou? Bem, eu cresci em uma parte muito conservadora do Reino Unido e eu faço parte de uma família conservadora e muitas das experiências de Jean, como as opiniões das pessoas ao seu redor – tanto os professores quanto os membros da família – são pontos de vista com os quais cresci, fiz parte e me submeti também, de certa forma. Muitas das experiências da Jean se sobrepõe às minhas próprias quando adulto e, sim, eu fui um estudante durante a Seção 28, durante a maior parte da Seção 28, mas o interessante sobre a Seção 28 foi apenas que ele propagou esse tipo de cultura de silenciamento. O que notei ao olhar para meus colegas de sala, as pessoas que estudaram na mesma época que eu, foi que muitas dessas pessoas não saíram do armário até os 20 ou 30 anos, porque a possibilidade de ser queer foi meio que apagada da vida pública e privada, então as pessoas não cresceram sabendo que era uma opção. Então, não há realmente uma única experiência, mas eu me lembro de crescer com esse silêncio causado pela vergonha e não ter nenhum modelo a seguir na TV ou em uma parte da minha vida imediata. E eu me lembro de todo mundo dizendo ‘Você pode fazer o que você quiser, mas guarde a portas fechadas e não mostre aos nossos filhos esse tipo de coisa’. Muito do jeito que as pessoas pensavam e eu me lembro dessas opiniões sobre o que fazer ao seu redor até muito recentemente, na verdade, muito disso é muito pessoal nesse aspecto.

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