Lewandowski defende mandatos no STF

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Foto: Nelson Jr/SCO/STF

Fora do Supremo Tribunal Federal (STF) desde abril, o ministro aposentado Ricardo Lewandowski afirmou, em entrevista exclusiva ao Valor, que o próprio Judiciário tem contribuído para aumentar a insegurança jurídica no país, especialmente em matéria tributária. “Há uma oscilação muito grande da jurisprudência”, criticou ele, agora prestando serviços à iniciativa privada. Para ele, no entanto, a reforma é positiva, embora chame a atenção o fato de ainda não haver definição sobre as alíquotas. Lewandowski também fez uma crítica à Fazenda Nacional, a quem atribuiu um “certo exagero” no cálculo dos riscos fiscais.

Vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2022, o ministro contou bastidores sobre o processo eleitoral tumultuado do ano passado e falou sobre os atentados de 8 de janeiro. “Nossas expectativas mais pessimistas acabaram se concretizando”, lamentou.

Lewandowski elogiou seu sucessor no STF, ministro Cristiano Zanin. Defendeu mandato de 12 anos para integrantes da Corte, embora tenha ficado 17 no cargo, e relativizou a questão de gênero para a próxima vaga que abre em setembro, com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. “A indicação é do presidente da República.”

Em relação à consultoria prestada para a J&F, Lewandowski afirmou que se trata de um caso pontual de direito privado: uma arbitragem envolvendo a Eldorado Celulose, que não traz nenhum conflito de ordem penal ou constitucional. É o maior conflito empresarial em curso no Brasil, de R$ 15 bilhões. O ministro disse ainda que não atuará em qualquer caso que já tenha examinado na condição de juiz. A seguir, os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: O ministro Zanin assumiu sua cadeira no STF. O que esperar desse novo momento da Corte?

Ricardo Lewandowski: Zanin é um jurista muito equilibrado, que preenche os requisitos constitucionais: notável saber jurídico, reputação ilibada, mais de 35 anos. Não precisamos de acadêmicos nas Cortes superiores, mas de pessoas seguras, firmes, que conheçam a Constituição e as leis. Ele foi um advogado combativo, resiliente, corajoso. Também penso que o perfil garantista, revelado na sua advocacia, é algo importante.

Valor: O fato de Zanin poder ficar no STF até 2050 fez ressurgir o debate sobre mandatos para ministros. Qual a sua opinião?

Lewandowski: Se pensarmos que um ministro pode entrar na Corte aos 35 anos e se aposentar aos 75, teremos 40 anos de exercício na cúpula do Judiciário, o que é um pouco incompatível com o espírito republicano. Não é de hoje que sou um defensor dos mandatos. Quando o presidente da República indica um nome para um tribunal superior, e o Senado sabatina e aprova, esse quadro representa a visão que a sociedade tem naquele determinado momento histórico. E isso muda em função da dinâmica social. Por isso defendo o mandato, quem sabe, de 12 anos.

Valor: Por quê?

Lewandowski: Porque permite que um ministro ocupe todos os cargos constitucionalmente possíveis: presidente do Supremo, do Conselho Nacional de Justiça, do TSE. Se for o caso da conjuntura histórica, presidente do Senado ou até presidente da República interino. Além disso, é tempo suficiente para se renovar e consolidar a jurisprudência da Corte. No TSE são dois anos de mandato, renováveis por mais dois. Essa rotatividade, sem prejuízo da estabilidade, é um exemplo de que o modelo pode dar certo.

Eu jamais atuaria em algum caso que examinei como juiz. Agora, o Direito é muito vasto”
— Ricardo Lewandowski
Valor: Ficou algum mal-estar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ele não ter indicado Manoel de Almeida Neto, que era o seu preferido?

Lewandowski: Não. A escolha é do presidente da República – no caso, uma pessoa eleita com quase 60 milhões de votos. É claro que eu tinha grandes amigos entre os candidatos, colegas muito bons, mas jamais faria uma restrição a quem quer que fosse.

Valor: Mas o sr. chegou a conversar com Lula a respeito?

Lewandowski: Tivemos conversas genéricas. Eu sempre me manifestei tendo em vista um perfil garantista, que eu considero importante para uma nomeação de natureza política.

Valor: O sr. considera que a Corte, hoje, tem esse perfil?

Lewandowski: Houve vários avanços nesse aspecto, de implementar medidas garantidoras para o cidadão. O cidadão, perante o Estado ou o juiz, é muito fraco, muito débil. Nós tornamos o processo penal mais garantista. Houve, por exemplo, as decisões que derrubaram a prisão em segunda instância e a condução coercitiva. Também determinamos que a delação premiada não pode servir, sozinha, como base para denúncia, muito menos para a condenação.

Valor: O sr. ficou 17 anos na Corte. Que legado o senhor acha que deixou para o tribunal?

Lewandowski: Sem pecar com a modéstia, as audiências de custódia foram um marco civilizatório. Todo cidadão preso em flagrante tem direito a ser ouvido por um juiz em até 24 horas. Cerca de 40% são liberados mediante condições, caso dos que não oferecem periculosidade. É uma forma de triagem importante para um sistema prisional sobrecarregado. As cotas raciais também me deram grande satisfação. Foi um voto unanimemente aprovado. A partir daquele momento, abriram-se as portas para pessoas negras na universidade, na política, no setor privado.

Valor: O sr. assumiu recentemente como conselheiro jurídico na Confederação Nacional da Indústria (CNI). Como avalia a crítica de que era necessário obedecer a uma quarentena?

Lewandowski: Eu estou em quarentena. Tenho três anos de impedimento para atuar no STF. Eu não atuo no STF. Minha área agora é a de consultoria. Eu estou como acadêmico, como professor titular da Universidade de São Paulo (USP), contribuindo com o setor privado.

Valor: Quando alguém da envergadura do sr. passa a atuar na iniciativa privada, o mercado se interessa em saber quem são esses clientes. Um deles é a J&F, envolvida em vários casos julgados pelo Supremo. Não há conflito?

Lewandowski: Os grupos econômicos desejam a expertise de alguém com 33 anos de serviço público, querem saber como são as coisas do outro lado, e isso é perfeitamente legítimo. Eu jamais atuaria em algum caso que examinei como juiz. Agora, o Direito é muito vasto. No caso da J&F, estou trabalhando em um ponto muito específico: supostos vícios em uma arbitragem que envolve a Eldorado Celulose. Essa arbitragem foi questionada no Tribunal de Justiça de São Paulo. Não tem nada a ver com STF, nada a ver com a área criminal ou constitucional. É uma questão técnica, de direito privado.

Valor: E na CNI, quais são as suas atribuições?

Lewandowski: Sou presidente de uma comissão de assuntos jurídicos de alto nível, com 11 especialistas em diversas áreas, como penal, tributária, constitucional, processual, administrativo. Nossa ideia é construir uma visão estratégica das questões jurídicas que possam afetar a indústria brasileira neste momento. Uma grande preocupação é com a segurança jurídica, o modo como ela impacta o empresariado e os investidores. Dia 30, vamos fazer uma reunião em que cada um de nós vai dar a sua visão sobre os possíveis gargalos e entraves. Vai ser um grande mapeamento. Estou satisfeito. É um trabalho desafiador. Eu saí do serviço público e agora estou vendo o outro lado do problema.

Entendimentos consolidados por muitas décadas acabam sofrendo reviravoltas”
— Ricardo Lewandowski
Valor: O sr. também vai presidir o tribunal arbitral do Mercosul. Qual o caminho para se resolver controvérsias jurídicas entre os países que integram o bloco?

Lewandowski: Precisamos ir além de uma mera união aduaneira. É desejável uma espécie de um direito comunitário, supranacional, pensar mais no mercado comum, na livre circulação de pessoas, capitais e produtos e bens, quando tivemos uma tarefa comum externa. Talvez, aos poucos, adotar um modelo parecido com o tribunal das comunidades europeias, incumbido de dirimir controvérsias sobre a aplicação das normas comunitárias nos distintos países. Aqui, ainda não temos um sistema tão amadurecido. Mas a tendência é o fortalecimento do Mercosul e de seus órgãos decisórios.

Valor: As discussões sobre o possível acordo bilateral entre Uruguai e China podem vir a esbarrar nesse tribunal?

Lewandowski: Acho que isso vai ser resolvido politicamente. A ideia é que o Mercosul atue como um bloco perante os demais blocos. Por isso, a meu ver, acordos bilaterais são indesejáveis. O Mercosul é a quinta economia do mundo e isso obviamente representa um poder de barganha maior. Penso que o atual governo tem todo interesse em fortalecer o Mercosul. Também sou otimista com o acordo do Mercosul com a União Europeia, embora algumas questões ainda precisem ser resolvidas, como a ambiental. Superados esses entraves, será um avanço extraordinário para as economias de ambos os blocos. Quem sabe, o próprio tribunal possa vir a ser chamado a resolver alguma dificuldade.

Valor: O nome do sr. foi considerado para assumir algum cargo no alto escalão do governo, como o ministério da Justiça ou da Defesa. Considerou essa possibilidade?

Lewandowski: Não. Fui cogitado porque, afinal de contas, quem sai do STF tem uma bagagem. Meu nome circulou, foi ventilado, mas jamais houve um convite, nem eu pleiteei nada.

Valor: O que o sr. acha do texto da reforma tributária que está no Congresso Nacional?

Lewandowski: É um avanço importante. Criar o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) no Brasil vai facilitar muito esse cipoal tributário que nós temos. Eu me preocupava com a questão federativa, de não deixar os Estados e municípios à mercê de um governo central, no que diz respeito à distribuição desses valores. A saída me pareceu bastante satisfatória. Não tenho maiores críticas, acho que é uma notícia alvissareira, é a primeira reforma em profundidade em muito tempo, e muito positiva no sentido da simplificação que precisamos. E agora que tenho esse viés da indústria, é muito bem-vinda.

Valor: O sr. acha que uma eventual judicialização da reforma tributária pode prosperar?

Lewandowski: A reforma tributária tem que implicar necessariamente uma consideração de ordem fiscal, orçamentária, para não deixar entes federados desamparados. Com o texto enviado ao Senado, não acho que vá haver judicialização, porque os direitos adquiridos foram preservados e as modificações serão feitas aos poucos, de forma modulada, sem retroagir. Isso vai evitar uma contestação massiva no Judiciário. A discussão sobre as alíquotas, que ainda vão ser fixadas mediante lei complementar, deve ser muito transparente e ampla. Isso vai exigir atenção dos contribuintes. É preciso um equilíbrio entre a capacidade contributiva e a necessidade de arrecadação por parte do Estado.

Valor: Há segurança jurídica no Brasil em matérias tributárias?

Lewandowski: Há uma oscilação muito grande da jurisprudência. É uma das grandes preocupações da indústria, do setor privado, dos investidores. Além de o sistema tributário ser extremamente complexo, o Judiciário não está contribuindo para dar segurança. Entendimentos consolidados por muitas décadas acabam sofrendo uma reviravolta, e ainda pior, com retroatividade, vulnerando o direito adquirido. Também já fiz uma crítica pública à Fazenda Nacional. Há um certo exagero no que diz respeito aos impactos de algumas medidas. Toda vez que há um problema envolvendo questão fiscal, o governo alardeia que são R$ 400 bilhões, R$ 500 bilhões de rombo, mas ninguém explica de onde vieram esses números. É claro que os magistrados ficam preocupados com esses dados. E nessa relação, quem sai enfraquecido é o contribuinte.

Valor: O sr. temeu um golpe de Estado nas eleições passadas?

Lewandowski: Acompanhamos essas questões de perto e com muita preocupação. Tínhamos informação de que o momento era de anormalidade institucional, com questionamentos absolutamente irrazoáveis sobre as urnas eletrônicas. Havia algo de estranho no ar. As “fake news” se multiplicaram de forma exponencial, com o auxílio de robôs, e se transformaram em um problema que jamais havíamos enfrentado: a possibilidade de o processo eleitoral ser maculado pelas notícias falsas. Tivemos que reformular totalmente nossos conceitos. Nossos serviços de informação também detectaram possíveis ameaças ao eleitor. Mas o tribunal tomou as medidas adequadas para garantir a livre manifestação da população.

Valor: Diante dessas ameaças, TSE chegou a considerar ampliar o horário de votação?

Lewandowski: Em nenhum momento. O cumprimento dos prazos legais é absolutamente fundamental. A proclamação do resultado pela autoridade judiciária atesta a regularidade das eleições. É um ato solene e formal. Os prazos precisavam ser cumpridos para que não houvesse um vácuo de poder, o que abriria margem para mais questionamentos. Mas conseguimos realizar as eleições e isso foi uma vitória extraordinária, graças ao papel da Justiça Eleitoral.

Valor: O que poderia ter sido feito para evitar os atos golpistas de 8 de janeiro?

Lewandowski: Nossas expectativas mais pessimistas acabaram se concretizando. As autoridades competentes talvez não tenham acreditado que aquilo poderia realmente acontecer. Eu estava no interior de São Paulo, liguei a televisão e fiquei estupefato. Peguei um avião imediatamente. O presidente convocou governadores, ministros, lideranças políticas, e descemos do Planalto para o Supremo. Foi um momento muito bonito de união institucional em defesa da democracia.

Valor: Como avalia a postura do ministro Alexandre de Moraes, tanto no TSE quanto no Supremo?

Lewandowski: Ele teve um papel relevantíssimo e histórico na defesa da democracia. Exerceu uma grande liderança, capitaneando a Justiça Eleitoral na garantia das eleições. Precisa ser exaltado. Além de ter uma vivência política muito intensa, devido aos diversos cargos públicos que ocupou, ele tem escopo intelectual para tomar as medidas que ele toma.

Valor: Qual o futuro do bolsonarismo, agora que o ex-presidente foi declarado inelegível pelo TSE?

Lewandowski: Um dos fundamentos da democracia é o pluralismo político. São bem-vindas todas as correntes ideológicas do país. O que não se permite é que haja uma pregação de ruptura institucional. Se o bolsonarismo tiver uma visão política de direita ou até de extrema direita, mas sem discursos de ódio ou de rompimento das estruturas institucionais, ele pode sobreviver.

Valor: O STF tem hoje apenas duas mulheres em sua composição. Em breve, terá apenas uma, quando a ministra Rosa Weber se aposentar. Em que medida a falta de diversidade prejudica o tribunal?

Lewandowski: Eu acho o STF um tribunal muito plural, por incrível que pareça. Talvez as pessoas não se deem conta disso. Ele é composto por pessoas de origens regionais e profissionais diferentes. Temos homens e mulheres. É claro que é importante que haja um número crescente de mulheres, mas a indicação é do presidente da República.

Valor: Como avalia a gestão do procurador-geral da República, Augusto Aras, que encerra seu mandato em setembro?

Lewandowski: O procurador-geral tem um excelente trânsito no STF. O Ministério Público é o fiscal da lei, e não um órgão acusador por natureza. É indesejável um Ministério Público militante, seja politicamente ou para aplicar a lei penal de forma exacerbada. De certo modo, Aras deu uma temperada no Ministério Público, que voltou ao leito natural, sobretudo depois da Lava-Jato, momento que eu reputo extremamente negativo para a história do processo penal brasileiro.

Valor Econômico